"E aqueles que pensam em Me procurar, saibam que a vossa busca e vosso anseio devem beneficiar-vos apenas se vós souberdes o Mistério; se o que vós procurardes, vós não achardes dentro de vós mesmos, então nunca encontrarão fora. Pois eu tenho estado convosco desde o Início e Eu Sou Aquela que é alcançada ao final do desejo"


domingo, 26 de setembro de 2010

DO FUNDO DO CORAÇÃO

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EU SOU PAGÃ HOJE NO BRASIL

Por Mavesper Cy Ceridwen


Eu sou pagã hoje no Brasil e vivo a religião da Deusa em amor e sinceridade, caminhando e aprendendo a fluir com os ritmos da natureza. Eu procuro viver em beleza, para que a beleza me envolva. Conheço a Deusa e a cada dia mais a compreendo um pouco, sabendo que jamais acabarei essa tarefa, o que enche minha vida de propósito e riqueza. Encontro a Deusa na face de cada pessoa que cruza meu caminho, mesmo as que me são desagradáveis.

Eu sou pagã hoje no Brasil e meu corpo dói com cada notícia de água envenenada, natureza esgotada, animais maltratados, extermínios e queimadas insanas... Conheço a Lua no meu próprio sangue, mesmo quando as nuvens a encobrem no céu. Vivo os ciclos da natureza e celebro as datas ancestrais, danço, canto e comemoro os grandes e pequenos Sabbats. A cada fase da Lua saúdo-a em grupo ou sozinha, mas nunca deixo de sorrir para cada um de seus mistérios.

Eu sou pagã hoje no Brasil e uso a magia para melhorar minha vida e das pessoas que me procuram, aprendendo com meus erros e renovando minha capacidade de reconhecer o universo como um milagre de magia e perfeito equilíbrio. Conheço os diversos mundos e busco trazer deles o que melhor condiz com minha realidade e as necessidades que surgem nos giros da Roda da Vida, aprendendo a lição dos ciclos.

Eu sou pagã hoje no Brasil e luto para me conhecer cada vez mais, vendo minha sombra e acolhendo o que posso integrar, conhecendo a Deusa Negra em minha vida e aprendendo a amá-la. Como pagã também vejo a sombra coletiva de nossa nação e não fecho os olhos quanto ao crime, a violência, a corrupção, a posse da terra, a miséria e a fome. Como pagã sou revolucionária, não conformista, universalista e ardorosa defensora das liberdades, mantendo a unidade da consciência ecológica a sabendo a importância de defender o direito de quem pensa diferente de nós.

Eu sou pagã hoje no Brasil e vejo com inquietação nossa religião se tornar mais conhecida e visada. Combato a ignorância esclarecendo todos os que se interessam pela bruxaria, mostrando que somos pessoas normais, com vidas normais e não espetáculos de salão. Sofro com a incompreensão, muito mais pelos outros do que por mim. Admiro quem se mantém fiel ao Caminho mesmo diante de dificuldades familiares e sociais e faço valer nossas leis de não discriminação religiosa.

Eu sou pagã hoje no Brasil e percebo a importância de conscientizar as pessoas de sua própria auto-imposta escravidão. Vejo a importância de agir e viver de acordo com meu poder pessoal e abençoo cada chance de transformação que a vida me traz. Como bruxa, tenho orgulho de ser mulher, de falar a outras mulheres sobre nossa irmandade básica e de ver os homens tocados pela Deusa como os companheiros ideais e a única esperança de uma sociedade feita de parceria e soma de capacidades.

Eu sou pagã hoje no Brasil e celebro a Roda do Ano criando junto com os deuses e com as pessoas que me cercam a dança ancestral, refazendo os caminhos já trilhados por nossos antepassado de uma maneira nova e em consonância com nosso tempo. Levo minhas crianças às celebrações lunares e solares, desejando que elas cresçam cada vez mais em consciência, auto-determinação, independência e liberdade. Que elas possam fazer a magia do amor modificar os mundos.

Eu sou pagã hoje no Brasil, vivendo em cidades grandes sou uma bruxa urbana que descobre a natureza nos locais mais inusitados. Danço minhas danças de poder nas danceterias, ou vou para parques. Sempre que posso busco a mata., o cerrado e a praia. Compro meus instrumentos em shoppings ou os faço com minhas mãos . Me reabasteço na natureza e dou poder a tudo que me cerca, vivificando com minha magia tudo o que faço, de escrever um texto a preparar um almoço, da roupa que uso ao modo como me movimento. Descubro a riqueza da minha terra, da herança indígena às contribuições européias e africanas, e as honro em meus rituais sem esquecer que a Deusa não tem nacionalidade, e fala todas as línguas.

Eu sou pagã hoje no Brasil e conheço muitos pagãos, cada vez mais gente que acorda do pesadelo das visões retilíneas do universo e passa a sonhar o doce sonho da Terra. Nessas pessoas descubro meus irmãos de alma, meus companheiros de caminho, meus parceiros na dança espiral. Me orgulho de viver em um tempo em que a Deusa sorri e podemos retribuir seu sorriso em alegria e liberdade. Nunca mais os tempos da fogueira!

Eu sou pagã hoje no Brasil e vejo mais e mais gente ouvindo o Chamado da Senhora. Eu sou pagã hoje no Brasil e a cada dia vejo aumentar a responsabilidade de orientação e auxílio que devemos dar aos mais novos na Arte, como expressão de nosso compromisso com os Antigos.

Eu sou pagã hoje no Brasil e sei que temos um dos maiores movimentos wiccanianos do mundo na atualidade, e busco me integrar às iniciativas e eventos que façam uma ponte entre nós e nossos irmãos de outros países, sabendo que isso fortalece nossos elos e o paganismo como um todo.

Eu sou pagã hoje no Brasil e sei como é difícil explicar a alguém que não o seja o que significa essa sensação única de ser integrado à Mãe e ser único e múltiplo, unido, completo e sagrado.


Eu sou pagã hoje no Brasil e a respiração de cada ser vivo deste planeta, e a pulsação de cada estrela além, bate no compasso do meu coração, pois eu sei que Dela é toda vida e todo amor.

IN: http://www.templodadeusa.com.br/virtual/vida/paga.htm

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

MONIKA VON KOSS

Pacífica guerreira

Depois que entraram no mercado de trabalho, as mulheres transformaram radicalmente suas expectativas de vida. Conquistaram direitos, curaram muitos aspectos, equilibraram o jogo, mas temos a sensação de que o pêndulo da civilização foi para o outro lado. As mulheres, por exemplo, atualmente estão comprando sexo, que era o máximo simbólico do poder masculino. Perguntamos a quem entende: o que está acontecendo com as mulheres hoje?
As mulheres sempre ‘compraram’ sexo, mas não pagavam com dinheiro, mesmo porque elas não tinham acesso ao dinheiro. Elas compravam indiretamente com a submissão, a sedução e outras artimanhas. A grande diferença é que agora elas o fazem de modo direto e, neste sentido, elas se equiparam e imitam os homens.
Aliás, seria necessário definir melhor o que entendemos por sexo. A compra de sexo não está relacionada com prazer, mas com poder. O sexo físico é a arena onde se defrontam os poderes de um ou de outro.
Os motivos são sempre individuais, podendo ir desde a imitação do comportamento dos homens até o desejo de vingar-se. Uma das razões é o fato de que, pela liberação dos costumes e a oferta fácil e abundante de parceiras sexuais jovens e freqüentemente inexperientes e menos exigentes, as mulheres de uma certa idade não encontram parceiros sexuais para vivenciar seu impulso sexual em uma relação de companheirismo. Fica como alternativa pagar para satisfazer-se fisicamente. Com dinheiro, são elas que estão no poder.
Um encontro íntimo de uma mulher e um homem tem um sentido muito mais amplo do que simplesmente um momento de prazer físico.
Prazer físico é a sensação de alívio ao descarregar uma quantia de energia acumulada. Neste sentido, também compro prazer físico quando vou ao massagista e me alivio das tensões acumuladas no corpo. Ou quanto tomo um analgésico e me desvencilho de dores.
Um encontro sexual significativo e nutridor é mais do que alívio físico; requer o encontro de almas, onde há uma troca energética que nos traz um sentimento de união, se não com a totalidade do universo (isto seria o êxtase!), pelo menos com uma outra pessoa. Este sentimento de união não se obtém em uma troca puramente física.
Assim, poderia dizer que as mulheres de hoje estão descobrindo seu próprio poder e exercendo-o de uma forma distorcida pela falta de modelos femininos de exercício do poder. Toda experiência de poder na nossa sociedade está baseada no modelo masculino, e é este que é imitado.

No livro Feminino + masculino, você afirma que somos irracionalmente apegados às imagens que temos a respeito de como deveria ser uma mulher ou um homem. E que devemos buscar a possibilidade de nos expressar enquanto “humanos”, sem nos preocupar com nossa conformação biológica. É por aí que começa o caminho das pedras para a cura das polaridades sexuais?

Sim, e é um caminho longo, que requer muita consciência. Primeiro, precisamos tornar conscientes as imagens impressas em nossa mente profunda, entendê-las, acolhê-las e avaliar se elas estão em consonância com aquilo que somos e queremos. Depois precisamos substituí-las por imagens que sustentem de forma positiva o que somos ou queremos ser. Parte deste trabalho pode ser feito sozinho ou com a ajuda de pessoas amigas e inimigas (estas muitas vezes nos ajudam mais, porque revelam coisas a nosso respeito que não queremos saber!). Mas, no que diz respeito às impressões mais profundas, que sustentam crenças e emoções limitadoras, podemos precisar de ajuda especializada, terapeutas que disponham de consciência e técnicas que nos ajudem a aprofundar o processo e que nos auxiliem a encontrar o caminho para nosso verdadeiro Ser.
Não acho que possamos desconsiderar nossa conformação biológica. Sempre seremos mulheres e homens, mas se pudermos ser plenamente quem somos, sem os papéis limitadores e fixos que nos são prescritos socialmente, podemos nos relacionar com todas as demais pessoas do lugar de inteireza e valor próprio com o lugar de inteireza e valor da outra pessoa.
Uma dica, que pode ajudar qualquer pessoa a começar este caminho das pedras e transformá-lo em um caminho gramado, é suspender o julgamento - sobre os outros e sobre si mesmo. Em vez de julgarmos o comportamento, a atitude, a reação de uma pessoa (nós incluídas!), podemos buscar entender sua razão e nos perguntar: Para quê? Como? De que outra forma? Estas perguntas são sempre melhores do que a clássica pergunta “Por quê?”, que apenas fecha a questão e não abre vias alternativas.
Suspender o julgamento não é achar tudo lindo e maravilhoso, sem discriminação. Apenas significa que, antes que eu tenha acesso a múltiplas perspectivas de um evento, eu suspendo meu julgamento e continuo olhando, perguntando e refletindo a respeito. Depois eu posso concluir minha posição em relação a ele.

O que são, na prática, parceiros equivalentes?
Parceiros equivalentes são duas pessoas inteiras em si mesmas
. Elas podem ser diferentes, cada qual com suas características próprias, suas habilidades específicas, seus saberes e preferências pessoais, sem que isto signifique que uma é melhor que a outra, que uma ‘manda’ mais que a outra, que uma tenha ascendência sobre a outra. Isto requer respeito mútuo e valorização das próprias qualidades e das qualidades da outra pessoa, uma complementando a outra com suas habilidades. Quando duas pessoas conseguem se relacionar neste nível, isto indica que cada uma delas é inteira em si mesma e que a parceria enriquece a vida de ambas. Isto significa incluir em vez de excluir.

Como funciona a polarização sexual reprojetada no anímico? Freud e a teoria da inveja do pênis caducaram? As mulheres já encontraram o conforto do seu espaço único?
Freud baseou a distinção psicológica entre homens e mulheres a partir das diferenças sexuais anatômicas. A inveja do pênis é apenas a inveja do poder do outro. Quando eu tenho poder próprio, não preciso ter ciúme do poder do outro. A curiosidade sexual entre crianças é mútua, os meninos querendo ver como são as meninas, e estas vendo mais facilmente como são eles. O feminino sempre é mais misterioso, porque seu poder se baseia em processos mais interiorizados: menstruação, gestação, lactação, por exemplo, enquanto o masculino é exteriorizado, o poder se expressa mais no social.
Jung re-projetou esta polarização sexual no anímico, ou seja, ele polarizou a fonte interna, estabelecendo a distinção social entre homens e mulheres no mundo também na dimensão anímica, de modo que os homens são impulsionados pelo feminino interno (anima) e as mulheres pelo masculino interno (animus). Assim, em vez de conduzir a uma inteireza pessoal, ao retorno da unidade a partir da qual surge a polaridade necessária para qualquer manifestação, ele aprofundou a polarização. Mesmo falando em última instância do self, para Freud o self masculino é a referência do equilíbrio desejável para homens e mulheres.
Para que as mulheres encontrem conforto em serem mulheres, é preciso que valorizem ambas as polaridades em si mesmas e nos homens, sem valoração de uma em detrimento da outra. O modelo que nós, mulheres, usamos para nos reconhecer ainda é o modelo masculino, pois este é o valorizado e enfatizado em quase todas as instâncias da vida cotidiana. Esta é uma das razões pelas quais as mulheres buscam imitar este modelo. Elas buscam valorização e reconhecimento através do modelo masculino. Mas isto elas só vão conseguir encontrar em si mesmas, valorizando e reconhecendo a si mesmas, suas companheiras de viagem e também - e isto é importante! - todos os parceiros masculinos nesta empreitada que é a vida.
Algumas mulheres já estão exercitando isto em suas vidas, mas para que isto se torne possível para todas, é preciso que a sociedade como um todo se transforme.

Qual é, hoje em dia, a verdadeira influência das mães na reprodução de uma educação machista? Seria correto afirmar que a maioria das famílias ainda cria homens e mulheres impregnados de machismo?
Há muito que as mães são culpadas de tudo! Vamos pensar nas mães como mulheres? Elas estão inseridas em um mundo definido pelo masculino, influenciadas por todos os meios, como qualquer outra mulher e homem. Tornar-se mãe não traz imediata e magicamente uma mudança nos valores e crenças que a mulher aprendeu a sustentar, em conseqüência de seu processo de socialização.
Além disso, a mulher não é a única ‘educadora’ no seio familiar, mesmo porque ela hoje não educa sozinha e antigamente não tinha poder para decidir como educar. É importante sempre levar em consideração o contexto de uma situação, porque a mãe também não é a única influência de uma criança enquanto cresce. Vivemos em uma sociedade machista, o que as mães podem fazer sozinhas? Isto não é pedir pelas Supermães, para que depois possamos culpá-las pelos nossos equívocos?
A família reproduz a organização social vigente e, se as mães são as mantenedoras desta organização social, quando as mulheres saem para o mundo do trabalho dito ‘masculino’, elas vão ter outras experiências, reflexões e elaborações, transformando-se. Com sua própria transformação, elas vão transmitir isto não apenas para seus filhos, mas para todas as pessoas com as quais se relacionam. É assim que a sociedade muda. Isto é tarefa de cada pessoa e leva seu tempo. Depende de cada uma/um de nós.

Em seu livro Rubra Força, sangrar vibra como um ato de poder. Se as mulheres, em sua maioria, retomassem conexão com seu sagrado, haveria menos cólicas menstruais e dores de parto?

As dores de parto não são um castigo de deus, mas estão relacionadas com a configuração anatômica humana: um ser com uma cabeça mais ou menos grande precisa passar por um canal estreito que pode ser mais ou menos flexível. O conforto e o sedentarismo da vida moderna não ajudam a facilitar este processo. A perda do sentido do sagrado transforma uma dor “engrandecedora” em algo indesejável. Apesar disto, certamente muitas mulheres experimentam o parto como um momento de realização profunda - isto talvez não significa ausência de dor, mas esta dor traz uma recompensa que a torna insignificante diante da experiência. Ao parir a partir de seu próprio poder, o esforço da mulher tem outro significado.
Podemos fazer um raciocínio semelhante com as cólicas menstruais. Diante dos desenvolvimentos tecnológicos, mudamos nosso modo de viver, de nos alimentar, de nos relacionar com os eventos biológicos. Isto altera o equilíbrio biológico e o corpo busca se adaptar e compensar. Cólicas são sempre contrações musculares; e contrações são sempre indicações de tensão, e uma tentativa de eliminar a tensão, ao mesmo tempo. Neste sentido, as cólicas menstruais podem nos fornecer informações sobre nós mesmas, se nos abrirmos para ouvir a voz do corpo, em vez de tentar calá-la pelo uso de analgésicos. Isto não quer dizer que devemos procurar o sofrimento e não aliviá-lo, mas podemos penetrar mais profundamente nas nossas sensações e sentimentos, trazendo consciência e, talvez, alívio de nossa tensão e das cólicas, por decorrência.
Há um grande movimento de retorno ao sagrado, mas a grande maioria segue um caminho masculino, mesmo quando atividades físicas são envolvidas. Para as mulheres, é importante retornar aos processos físicos femininos, pois estes foram o alvo principal da supressão do valor das mulheres no patriarcado.

Fluxos tão fundamentais na vida de uma mulher, o leite e o sangue... Como você traduz esse interessante link feminino com os líquidos?
Homens e mulheres, somos compostos por 80% de água, assim como o planeta possui muito mais água do que terra. Assim como a vida emergiu do mar, a cria humana emerge das águas uterinas. Como mamíferos, o alimento para a cria humana jorra dos seios das fêmeas. Estas experiências arcaicas são atávicas, ou seja, estão profundamente inscritas na matéria de que somos feitos e entretecidas com o que somos. Isto faz com que as águas, e tudo que flui, simbolicamente sejam associadas com o feminino.

Nos anos recentes, há um retorno bem expressivo da espiritualidade matrifocal em nível mundial. Como você enxerga esse fenômeno no Brasil?
Não tenho conhecimento direto suficiente para emitir uma opinião objetiva. Do que conheço, sei que não basta usar o rótulo de matrifocal para que seja, realmente, uma perspectiva feminina. Apesar disto, acho todas as tentativas válidas, pois de alguma forma são manifestações de algo que está muito emaranhado e precisa de meios variados para vir à tona.
A espiritualidade matrifocal busca recuperar um tempo em que o centro da organização social era a mãe e seus filhotes - o que ainda hoje predomina. Havia uma valorização do papel materno, uma questão básica para a sobrevivência de pequenos grupos humanos e sua expansão. Em minha opinião, isto não estava relacionado com poder, mas com o funcionamento natural da vida, pois estes pequenos grupos arcaicos dependiam profundamente de todos os indivíduos do grupo para sua sobrevivência.
Acredito que o desenvolvimento dos conceitos de masculino e feminino tem mais a ver com as sociedades modernas, onde o poder está desigualmente dividido entre seus integrantes, e especialmente entre mulheres e homens.

Qual é a importância dos clãs modernos? Mulheres de cidade grande em comunhão pelo simples prazer de estarem juntas... Como você vê a retomada da ritualização dos ciclos, da natureza “circular”, da sintonia com a lua, etc.?
Por que as mulheres não deveriam se reunir pelo simples prazer de estarem juntas? Aliás, acho que este é o motivo mais genuíno para que mulheres e homens, separados ou misturados, estejam juntos.
Acho de fundamental importância as mulheres se reunirem, porque a organização familiar nuclear isolou as mulheres, cada qual em sua casa com sua cria, isolando-a do contato humano adulto tão necessário à qualquer pessoa. Quando as mulheres se reúnem, elas ficam mais à vontade para ser quem são. Assim que um homem se faz presente, há uma mudança de atitude, em virtude da contaminação pela perspectiva masculina dominante, também na mente das mulheres.
Assim, para que as mulheres aprendam a sustentar seu próprio jeito de ser no mundo, é importante experienciarem este mundo feminino em um ambiente apropriado, como sempre fizeram as mulheres tribais, quando se retiravam para a tenda da lua, para viverem sua menstruação, ou se retiravam para a floresta para parir seus filhos.
Quando nos conectamos com os ciclos da natureza, estamos nos conectando com nossa natureza interna. Quando ritualizamos estes momentos, criamos novas impressões e hábitos, que vão nos possibilitar sustentar nosso jeito de ser em todos os momentos da vida.

Há dezenas de revistas femininas no Brasil, e outros tantos programas especializados na tevê. Como você vê essa explosão editorial, e a quantas anda o foco e o “discurso” da mídia?
A mídia é uma atividade econômica que precisa trazer lucro, como toda atividade econômica. Isto posto, o tema do feminino é atual, as mulheres estão em busca de si mesmas, as pessoas de um modo geral não têm tempo, nem hábito, nem são estimuladas para se aprofundarem em qualquer tema.
As revistas procuram atender à demanda de seu público por soluções rápidas, fáceis, simplistas e charmosas. Precisam vender os produtos de seus anunciantes para financiar sua atividade. A busca incessante de novidade faz com que o de hoje já esteja ultrapassado amanhã. Todos estes elementos não propiciam um mergulho nas profundezas do Ser. Qualquer tema que requer aprofundamento e transformação vai contra todas estas demandas.
A grande contribuição da mídia é a divulgação da informação e um primeiro contato com temas que, de outro modo, a pessoa não teria. Boa informação, transmitida em sintonia com o estado de coisas do mundo atual, pode abrir caminhos. O aprofundamento fica restrito a espaços mais intimistas.

A intuição é domínio do feminino? Procede a sensação geral de que as mulheres têm mais curiosidade pelo esoterismo? A febre pelos oráculos, por exemplo, como você explica?

A intuição é uma habilidade humana e, portanto, mulheres e homens a possuem. O que se chama do ‘sexto sentido’ das mulheres foi e é uma habilidade necessária para criar os rebentos. É a capacidade de empatia com sua cria, para saber o que estes seres recém chegados ao mundo precisam para que se desenvolvam de modo saudável.
Menos submetidas ao mundo estritamente racional como foram os homens, as mulheres tiveram mais experiência, tempo e permissão para manterem despertas suas habilidades ditas metafísicas, como é o caso da intuição. E isto faz com que sejam mais atraídas para o “esoterismo”. E ponho esta palavra entre aspas, porque o verdadeiramente esotérico são as ditas ciências secretas, que eram secretas apenas porque eram inacessíveis aos não iniciados, do mesmo modo que uma matéria universitária é inacessível ao aluno do primeiro grau.
A febre pelos oráculos revela o sentimento das mulheres de que não possuem, elas próprias, a capacidade de determinarem sua vida. Precisam que alguém lhes diga que vai acontecer o que desejam. Isto não quer dizer que os oráculos não têm sua função e importância, para nos revelar coisas a respeito de nós mesmas, trazendo consciência. Mas isto não seria uma “febre”.

Como você relaciona as deusas “Afrodite” e “Artemísia” com a mulher atual? É possível reconhecer um homem pelas deusas que sua mulher vibra?

Afrodite é a Deusa que representa a energia que mantém o universo coeso. Ela é o poder de atração que une as pessoas e que nós reduzimos ao apelo sexual, empobrecendo nossa experiência. Também violamos Afrodite quando reduzimos a beleza a uma forma pré-determinada, como fazem as cirurgias plásticas e os regimes, enquanto permitimos que todo nosso meio-ambiente seja degradado pela feiúra. Há uma exacerbação da sexualidade como distorção de Afrodite que precisa ser curada. E a cura pode ser fornecida por Artemísia, esta deusa que se recusa a participar do patriarcado e se retira para a floresta, onde vive de acordo com seus desejos e a natureza. Ela se expressa pela busca pela natureza, pelo movimento ecológico e a busca pela solitude, onde nos encontramos com nós mesmas. Ela, por sua vez, precisa de Afrodite para curar seu sentimento de solidão.
As Deusas que uma mulher vibra dizem respeito apenas a ela. Podemos talvez reconhecer o que busca um homem, pelas mulheres com quem se relaciona. Mas podemos reconhecer as deusas em um homem, pois os homens também são permeados pela energia feminina, assim como as mulheres são permeadas pela energia masculina.

Qual mensagem final você deixaria para os leitores do ABSOLUTA? Como vê nossa proposta editorial?
Acho importante um site como o ABSOLUTA, pois divulga as questões do feminino e do espiritual e as pessoas ligadas a este tema, com qualidade e conhecimento. A internet hoje é um veículo importante de conexão entre as pessoas.
Gostaria de dizer a todas as pessoas - mulheres e homens - que busquem ser quem são, conscientes de que sua participação é importante, independente do que sejam ou façam. Todos somos uma parte única e importante da humanidade.


Colaborou:
Paloma Piragibe
Jornalista
palomapiragibe@hotmail.com
Rio de janeiro/RJ

IN: ABSOLUTA - ONLINE

A SINTONIA COM A MÃE


" (...) A sintonia com a Vida e com a Terra, vista como Mãe, é algo que nós neo-pagãos bem entendemos. Este é o valor mais ausente desta cultura utilitarista e consumista que se instalou no mundo: Não conseguem sentir a Vida pulsando em tudo à nossa volta, perderam o elo com a Mãe Terra, ser vivo e dinâmico, com o qual podemos criar uma relação que nos permite um grau de completude, de plenitude existencial e energética inominável.

Um dos riscos que vejo na Wicca hoje é uma adoção de um culto formal à Deusa, fazendo aquilo que tantos chamam de criar um "jeová" de saias. Sem a consciência ecológica não há ligação com a Deusa. Sem a mudança dos paradigmas fundamentais nos quais fomos criados, que não são ecológicos, não levam a uma relação direta com a divindade sem intermediários e sentindo faces da divindade em cada aspecto da existência. Sem esses pontos-base não há paganismo. Sem perceber a Deusa na natureza e na vida como um todo não há paganismo efetivo. É minha opinião que os cultos a uma "personalização" da Deusa pouca relação tem com "sentir" e "celebrar" a Deusa, que sempre foi sentir e celebrar a própria vida em seus ciclos. Uma pessoa que se diz pagã e não possuí aguda, clara e intensa consciência ecológica é alguém diletante, alguém que apenas repete formas prontas, sem entender a essência. Pois como estar em um movimento que busca ser uno com a vida sem ter essa consciência ecológica plenamente desenvolvida? Este me parece o primeiro ponto.

Segundo ponto a debater é a questão de sentir a Deusa. A percepção da Deusa sem faces, da Deusa enquanto origem e fonte sempre foi um conhecimento iniciático. Pelo que pesquisei nenhum culto "popular" tinha essa concepção. Sempre neste nível mais "exotérico" o culto era a uma das faces da divindade, da Deusa. O conceito da Fonte sem Fonte, da Deusa sem face sempre esteve associado aos trabalhos já dentro dos chamados mistérios. Estes dois níveis da religiosidade antiga nunca podem ser esquecidas quando falamos sobre os cultos ancestrais, os cultos abertos ao público e portanto os únicos que deixaram registros possíveis de serem estudados pelos historiadores tinham um outro aspecto, secreto, oculto, transmitido apenas de boca para ouvido e que sobrevive até os dias de hoje dentro destas mesmas premissas, pois me parece uma das grandes ilusões contemporâneas crer que o secreto e o sagrado estão revelados. Aliás podem até estar, já que etimologicamente revelar é velar de novo. RE-velar. Mas nunca o sagrado, o segredo, os mistérios serão revelados neste sentido que dão ao termo, pois não é o mistério que pode ser aberto à compreensão limitada de quem apenas foi condicionado pela sociedade, mas somos nós que temos que nos desenvolver, sutilizar e ampliar nossa percepção para mergulhar na vastidão onde reside o secreto e o sagrado. Como a cor só se revela a alguém quando este alguém abre os olhos, não há como falar sobre cores a quem insiste em manter os olhos fechados.

O esoterismo contemporâneo, ou, melhor dizendo, o que se convencionou chamar de esoterismo hoje, é um conjunto de idéias que remete ao transcendente, mas ir ao transcendente é algo para ser feito com plenitude, jamais apenas como conceito intelectual. Da mesma forma, o paganismo é algo que hoje precisa ser recuperado. Não está em nós, criados como civilizados, de forma "natural". Por isso gosto do termo “neopagão”, fica claro que somos pessoas com toda uma influência cultural urbana, que pouco a pouco lutam para recuperar uma abordagem mais plena e realista da vida, que inclui o perceber da Vida em sua plenitude e da natureza como ser vivo e do qual fazemos parte. Por isso, lendo esta carta do chefe Seattle a gente volta a notar como são distintos e distantes os paradigmas da cultura que fomos criados e destes povos nativos." (...)
Nuvem que Passa
in http://pistasdocaminho.blogspot.com/

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

SENHORA DAS ÁGUAS CRIADORAS


Nu Kua

Deusa na mitologia da China que criou a humanidade. Muito poderosa, metade humana e metade serpente. Ela é associada à chuva, poças de àgua, lagoas, lagos e outros lugares onde as àguas param e são populadas por criaturas Anfíbio e peixes.

Há cerca de seis ou sete mil anos havia um mito universal de que todos os seres eram provenientes do Útero de uma Mãe Cósmica; tal mito da criação universal teve lugar durante uma fase informe do mundo, aonde nada podia ainda ser identificado. Inicialmente cultuada na Índia, como Kali, a Mãe Informe, recebeu depois o nome de Tiamat (Babilônia), Nu Kua (China), Temut (Egito), Têmis (Grécia pré-helênica) e Tehom (Síria e Canaã) --este último foi o termo usado mais tarde pelos escritores bíblicos para Abismo. As mais antigas noções de criação se originavam da idéia básica do nascimento, que consistia na única origem possível das coisas e esta condição prévia do caos primordial foi extraída diretamente da teoria arcaica de que o útero cheio de sangue era capaz de criar magicamente a prole. Acreditava-se que a partir do sangue divino do útero e através de um movimento, dança ou ritmo cardíaco, que agitasse este sangue, surgissem os "frutos", a própria maternidade. Essa é uma das razões pelas quais as danças das mulheres primitivas eram repletas em movimentos pélvicos e abdominais. Muitas tradições referiram o princípio do coração materno que detém todo o poder da criação. Este coração materno, "uma energia capaz de coagular o caos espumoso" organizou, separou e definou os elementos que compõem e produzem o cosmos; a esta energia organizadora os gregos deram o nome de Diakosmos, a Determinação da Deusa. Os egípcios, nos hieróglifos, chamaram este coração de ab e os hebreus foram os primeiros a chamar de pai (ainda que masculinizassem, a idéia fundamental de família e continuidade da vida não era patriarcal).
O coração e o sangue definem um elo imanente a todos os seres que dele nasceram e uma idéia de coração oculto do universo que pulsa e mantém o ritmo de ciclos das estações, dos nascimentos, mortes, destinos. Este é o significado que está no Livro dos Mortos ou das mutações. No mesmo sentido o livro chinês é denominado Livro das Mutações. O nome chinês dado à Mãe Primordial e informe é Nu Kua, nome referido também entre os egípcios, gregos, mesopotâmicos e hindu. As referências a ela remontam há 2.500 a.C. e a imagem permanece venerada nas regiões setentrionais. Kuan Yin ou A Mulher é uma Deusa dos casamentos e das mulheres em geral. O corpo original do I Ching chama-se (oito Trigramas) e os sessenta e quatro hexagramas são denominados por kua, derivado linguísitico de Mãe Primordial ou Nu Kua. Muito parecida com a Deusa Ninhursag da Mitologia Suméria.

IN:NUA KUA - WIKIPÉDIA, A ENCICLOPÉDIA LIVRE

GRANDE ÍSIS


Eu sou a Natureza, Mãe de todas as coisas, a Senhora de todos os elementos, a primordial progênie dos séculos a suprema das divindades.
A Rainha dos mortos, a primeira das celestiais e a uniforme representante das Deusas e dos Deuses; eu que governo com o meu aceno as alturas luminosas do céu, as suaves brisas do mar e os nefastos silêncios dos infernos, e cuja única divindade toda a humanidade venera debaixo de múltiplas formas, sob vários rituais e debaixo de muitos nomes, sou adorada em toda à parte.
Cada nação tem o seu nome próprio para mim, vendo apenas um dos meus mitos, adorando-me com apenas um dos seus ritos.
Na antiga Frígia sou Pessinuntica, Mãe dos deuses; para os áticos autóctones, Minerva Cecrópia; os flutuantes cípricos me chamam Vênus Pafia; em Atenas, onde os homens nascem do próprio solo, sou Artémis; na ilha de Chipre sou a dourada Afrodite.
Os arqueiros cretenses chamam-me Diana Dyctinna, os Sicilianos trilingues Proserpina, e os Eleusinos a intemporal Mãe dos cereais a Deusa Ceres.

Uns chamam-me Juno, outros Bellona das batalhas outros Hecate ou Rhanumbia. Mas há os que me conhecem melhor, aqueles que são iluminados pelos primeiros raios do Deus Sol nascente, os etíopes, os ários e os egípcios, abalizados na antiga ciência, adoram-me em cerimônias próprias e me chamam pelo meu nome verdadeiro, a Rainha Ísis

Pára, pois agora de chorar, pois vim ajudar-te: olhei lá de cima e vi as mágoas da tua vida e tive piedade dos teus infortúnios... Por isso seca as tuas lágrimas e rebate a tristeza. Tudo vai mudar em breve e sob a minha luz vigilante a tua vida será refeita, renovada.

Vim meu filho em resposta às tuas orações.


(Adaptação livre do texto d’ “O Burro de Ouro” de APULEIO)
ENCONTRADA EM SACERDOTISA D'ÍSIS

O CAMINHO DA GRANDE DEUSA


UMA FORMA DE ELECTRIZAR A MULHER

O ORGULHO DA DEUSA VIVER EM NÓS e através de nós…

“O simbolismo da Deusa electriliza a mulher moderna. A redescoberta das antigas civilizações matriarcais nos dá um senso profundo de orgulho, de ver a nossa capacidade como mulheres em criar e produzir cultura. Denunciar os erros do patriarcado nos dá um modelo de força e autoridades femininas. A Deusa arcaica, a divindade primordial, a Senhora dos caçadores da idade da pedra e das primeiras sementeira de grão, sob cuja inspiração os animais foram domesticados e as plantas medicinais descobertas, Aquela cuja imagem deu origem ás primeiras obras de arte que foram criadas, para a qual foram erigidos os megalitos, Aquela que inspirou a música e a poesia, é novamente reconhecida hoje.”
*
Na Witch craft, o “Caminho da Deusa”* nós não cremos na Deusa, nós nos religamos a Ela através da Lua, das estrelas, do oceano, da terra, através das árvores, dos animais, dos outros seres humanos, através de nós mesmas. Ela está aqui, Ela está no coração de todos e de tudo. A Deusa existe antes de toda a Terra, Ela é o obscuro, a Mãe que nutre e que produz toda a vida. Ela é o poder fecundante da vida, o Útero, mas também a tumba que nos recebe, o poder da Morte. Tudo Dela provem, tudo a Ela retorna…Ela é o corpo, e o corpo é sagrado. Útero, seios ventre, boca, vagina, pénis, ossos, sangue; nenhuma parte do corpo é impura, nenhum aspecto do processo de vida é manchado pelo pecado. O nascimento, a morte e a dissolução são três partes sagradas do ciclo. Quer comamos, façamos amor ou eliminemos os dejectos de nosso corpo, sempre manifestamos a Deusa.*

Seu culto pode assumir qualquer forma, em qualquer lugar; ele não requer liturgia, nem catedral nem confissão.


(…)
O desejo é a cimento do universo, ele vincula o electrão e o núcleo, o planeta ao sol, ele cria as formas, ele cria o mundo. Sigam o desejo até ao seu termo, unam-se ao objecto desejado até se tornarem esse objecto, até se tornarem a Deusa.”
“Para a mulher, a Deusa simboliza o seu ser mais profundo, o poder libertador, nutritivo e benéfico. O cosmo é modelado como um corpo de mulher, que é sagrado. Todas as fases da vida são sagradas. A idade é uma bênção, não uma maldição. A Deusa não limita a mulher a ser um mero corpo, Ela desperta o espírito, a mente e as emoções. Através Dela a mulher pode conhecer o poder da sua cólera, assim como a força do seu amor.
Star Hawk
*
Citações tiradas de:
Tantra – O Culto da Feminilidade - Outra visão da vida e do sexo
André Van Lysebeth

IMAGEM: "GAIA" in Arte de Montserrat
IN: MULHERES & DEUSAS - ROSA LEONOR

terça-feira, 21 de setembro de 2010

A MULHER INSTINTIVA E NATURAL


A fauna silvestre e a mulher selvagem são espécies em risco de extinção.

Observamos, ao longo dos séculos, a pilhagem, a redução de espaço e o esmagamento da natureza instintiva feminina
. Durante longos períodos ela foi mal gerida, à semelhança da fauna silvestre e das florestas virgens. Há alguns milénios, sempre que lhe viramos as costas, ela é relegada às regiões mais pobres da psique. As terras espirituais da Mulher Selvagem, durante o curso da história, foram saqueadas ou queimadas, com seus refúgios destruídos e seus ciclos naturais transformados à força em ritmos artificiais para agradar os outros.
Não é por acaso que as regiões agrestes e ainda intocadas do nosso planeta desaparecem à medida que fenece a compreensão da nossa própria natureza selvagem mais íntima. Não é tão difícil compreender porque as velhas florestas e as mulheres velhas não são consideradas reservas de grande importância. Não há tanto mistério nisso. Não é coincidência que os lobos e os coiotes, os ursos e as mulheres rebeldes tenham reputações semelhantes. Todos eles compartilham arquétipos instintivos que se relacionam entre si, por isso, têm reputação equivocada de serem cruéis, inatamente perigosos, além de vorazes. Minha vida e meu trabalho como analista junguiana e cantadora, contadora de histórias, me ensinaram que a vitalidade esvaída das mulheres pode ser restaurada por meio de extensas escavações "psiquico-arqueológicas", e, através de sua incorporação ao arquétipo da Mulher Selvagem, conseguimos discernir os recursos da natureza mais profunda da mulher. A mulher moderna é um borrão de actividade. Ela sofre pressões no sentido de ser tudo para todos. A velha sabedoria há muito não se manifesta. O título do livro, Mulheres que correm com os lobos, mitos e histórias do arquétipo da Mulher Selvagem, foi inspirado em meus estudos sobre a biologia de animais selvagens, em especial os lobos. Os estudos de lobos Canis Lupus e Canis rufus são como a história das mulheres, no que diz respeito à sua vivacidade e à sua labuta. Os lobos saudáveis e as mulheres saudáveis têm certas características psíquicas em comum: percepção aguçada, espírito brincalhão e uma elevada capacidade para a devoção. Os lobos e as mulheres são gregários por natureza, curiosos, dotados de grande resistência e força. São profundamente intuitivos e têm grande preocupação para com seus filhotes, seu parceiro e sua matilha. Têm experiência em se adaptar a circunstâncias em constante mutação. Têm uma determinação feroz e uma extrema coragem. No entanto as duas espécies foram perseguidas e acossadas, sendo-lhes falsamente atribuído o fato de serem trapaceiros e vorazes, excessivamente agressivos e de terem menor valor que os seus detratores. Foram alvo daqueles que preferiam arrasar as matas virgens bem como os arredores selvagens da psique, erradicando o que fosse instintivo, sem deixar que dele restasse nenhum sinal. A actividade predatória contra os lobos e contra as mulheres por parte daqueles que não os compreendem é de uma semelhança surpreendente. (...) Chamo-a Mulher Selvagem porque essas exactas palavras, mulher e selvagem, criam llamar o tocar a la puerta, a batida dos contos de fadas à porta da psique profunda da mulher. Llamar o tocar a la puerta significa literalmente tocar o instrumento do nome para abrir uma porta. Significa usar palavras para obter a abertura de uma passagem. Não importa a cultura pela qual a mulher seja influenciada, ela compreende as palavras selvagem e mulher intuitivamente.

(...)
Quando as mulheres reafirmam seu relacionamento com a natureza selvagem, elas recebem o dom de dispor de uma observadora interna permanente, uma sábia, uma visionária, um oráculo, uma inspiradora, uma instintiva, uma criadora, uma inventora e uma ouvinte que guia, sugere e estimula uma vida vibrante nos mundos exterior e interior. Quando as mulheres estão com a Mulher Selvagem, a realidade desse relacionamento transparece nelas. Não importa o que aconteça, essa instrutora, mãe e mentora vagem dá sustentação às suas vidas interior e exterior. Portanto, o termo selvagem neste contexto não é usado em seu actual sentido pejorativo de algo fora de controlo, mas em seu sentido original, de viver uma vida natural, uma vide em que a criatura tenha uma integridade inata e limites saudáveis. Essas palavras, mulher e selvagem, fazem com que as mulheres se lembrem de quem são e do que representam. Elas criam uma imagem para descrever a força que sustenta todas as fêmeas. Elas encarnam uma força sem a qual as mulheres não podem viver. O arquétipo da mulher selvagem pode ser expresso em outros termos igualmente apropriados. Pode-se chamar essa poderosa natureza psicológica de natureza instintiva, mas a Mulher Selvagem é a força que está por trás dela . (...) A mulher selvagem carrega consigo os elementos para a cura; traz tudo o que a mulher precisa ser e saber. Ela carrega histórias e sonhos, palavras e canções, signos e símbolos. Ele é tanto o veículo tanto como o destino.

Aproximar-se da natureza instintiva não significa desestruturar-se, mudar tudo da esquerda para a direita, do preto para o branco, passar do oeste para o leste, agir como louca ou descontrolada. Não significa perder as socializações básicas ou tornar-se menos humana. Significa exactamente o oposto. A natureza selvagem possui uma vasta integridade.
(...) E então, o que é a Mulher Selvagem? Do ponto de vista da psicologia arquetípica, bem como da tradição das contadoras de histórias, ela é a alma feminina. No entanto, ela é mais do que isso. Ela é a origem do feminino. Ela é tudo o que for instintivo, tanto do mundo visível quanto do oculto - ela é a base. Cada um de nós recebe uma célula refulgente que contém todos os instintos e conhecimentos necessários para nossa vida."

Clarissa Pinkola Estés - Mulheres que correm com os lobos


domingo, 19 de setembro de 2010

NEITH, SENHORA DE TODAS AS COISAS


Neith era a Abridora de Caminhos, a Caçadora, Senhora do Oeste, Deusa guerreira e protetora. Seu nome significa "Eu venho de mim mesma", ou autoconcebida. De acordo com a lenda Neith emergiu das águas primevas. Seguiu o curso do rio Nilo em direção ao mar, até alcançar o Delta, dando forma à cidade de Sais. Ela se autogerou e como a "Mãe Original", uma divindade andrógina, englobava tanto o feminino como o masculino. A sua bissexualidade era original, não tendo recorrido a nenhum deus masculino para iniciar a concepção dos vários elementos do Cosmos. As composições teológicas de Esna, em egípcio "Iunit", em grego Latópolis, devido ao peixe "Lates", ali considerado animal sagrado de Neith, outro dos seus principais lugares de culto, explicam as características da antiga potência demiúrga do Baixo Egito da seguinte forma: "Pai dos pais, a Mãe das mães, o ser divino que começou a ser no começo quando se encontrava no seio das águas iniciais, saiu dela mesma, enquanto a terra estava nas trevas e não havia nenhuma terra, nem planta... Ela clareou o olhar dos seus olhos e veio o haver luz... E tudo o que seu coração continha veio rapidamente a existir". Tendo concebido o mundo no seu coração, fez vários elementos virem à existência ao pronunciar simplesmente os seus nomes. Com as sete palavras criativas surgiram: a coluna inicial sobre a qual tomou posição (situada simultaneamente em Sais e Esna, os seus declarados santuários), o Sol (Rá-Amon-Khnum), a Ogdáode de Hermópolis e o deus Thot. Face à essa especulação, ela é a mãe de Rá, enquanto vaca Ilhet que surge do caos primordial e que auxilia o nascimento do Sol. Nessa forma, associada ao tempo primário e a recriação diária, abria os caminhos do Sol. Muitas referências feitas ao renascimento do Sol nos vários pontos do céu durante as mudanças sazonais demonstram os diferentes aspectos de Neith, que reina em forma de Deusa celeste. Neith é a criadora única de tudo que está no interior aa terra, minerais e pedras preciosas, a "Senhora do Deserto", a "Senhora do Mar", o "Grande Tudo", a "Todo-Poderosa". Na Época Baixa, é chamada "A Mãe dos deuses". Quando assume a forma de vaca, gera inevitáveis associações com Hator e Ísis. Assim, Hórus é também seu filho. Sua função mais antiga parece haver sido uma Deusa guerreira e da caça, embora também foi Deusa da Sabedoria. No período pré-dinástico tinha a forma de escaravelho e posteriormente, seus atributos foram o arco e flecha cruzadas sobre o escudo, que constituíam seu emblema. Também levava uma coruja na mão direita e uma lança na esquerda. Foi por isso, que Heródoto a associou a Atena. Na época dinástica, a apar com seus atributos de caça/guerra e da Deusa do Baixo Egito, Neith é também adorada como divindade tutelar da tecelagem. É, portanto, considerada a Deusa que ensinou os humanos a arte da tecelagem, as artes domésticas. Era padroeira dos tecelões de Sais que trabalhavam o linho para as faixas das múmias. Daí que, muitas vezes, seja figurada com a lançadeira de tecer na cabeça. Também nesse aspecto, a "interpretatio gareca" com Atena apresentava plausibilidade e correção. Ela usava a coroa vermelha do Baixo Egito e em suas mãos segurava um arco e duas flechas. O abutre era o animal sagrado de Neith e de outras Deusas. O símbolo hieroglífico para "mãe" era um abutre. Ele come os cadáveres e lhes dá novamente a vida, simbolizando o ciclo da perpétua transmutação morte-vida. Nos textos das pirâmides, foi identificado com a Deusa Ísis. As misteriosas palavras de Ísis, as que conferem vida devem ser conhecidas pelos defuntos:"A posse da oração do abutre te será benfazeja na região dos mil campos". A partir do Reino Antigo, Neith, protegia Osíris, Rá e o faraó e era identificada com a abelha (bit), o que explica precisamente que o seu templo em Sais se chamasse per-bit. Símbolo real e solar, a abelha era associada ao raio e nascera das lágrimas de Rá caídas na terra. No plano social ela representa o Mestre da Ordem e da prosperidade e também o ardor guerreiro ou a coragem. Seu simbolismo estabelece a ordem e a harmonia, tanto pela sabedoria como pela lança. Todas as Deusas partenogenéticas criadas por si mesmas sem a ajuda da inseminação do varão, gradualmente se transformaram em noivas, esposas e filhas, como resposta ao sistema patriarcal e patrilinear e com a Deusa Neith, não foi diferente. Em Sais, de onde procedia, era conhecida como "Senhora do Mar" e esposa de Sobek, enquanto em textos de Reino Antigo, tinha a Seth como marido e era mãe de Sobek, com o Título de "Amamentadora de Crocodilos". Outro centro do culto era Esna (Alto Egito), onde era conhecida como "Aterradora", aqui era esposa de Khnum e mãe de Apofis (serpente maléfica), constituindo a tríade de Esna. Os salmos litúrgicos dessa localidade apresentam-na ainda assimilada a Sopdi, a Mut, a Nekhebet, a Bastat, além de Sekhemet e a Hator. Segundo outro relato mítico, da saliva que lançou nas águas primordiais produziu Apófis. Como "Dama do Ocidente" era a protetora dos vasos de vísceras e velava o defunto junto com Ísis, Neftis e Selket. Sob sua proteção está o vaso de Duamutef, com cabeça de chacal, que contém o estômago do rei mumificado. OS "Textos das Pirâmides" e os "Textos dos Sarcófagos" referem-na já nessas funções, o que atesta a sua antiguidade e realça a sua função com o faraó morto. Mas, além de proteger as vísceras do defunto, protegia seu descanso e seu sono, disparando suas flechas contra os maus espíritos. Nessa acepção, em que funde os seus caracteres de divindade funerária e Deusa Guerreira, costumava ser representada nas cabeceiras das camas egípcias. No famoso túmulo de Tutankamon foi encontrado quatro estatuetas douradas pequenas de quatro deusas são elas: Aset (Isis), Nebt-Het (Nephtys), Serqet (Selket) e Nit (Neith). Neste contexto, podemos identificar Neith, como protetora dos mortos, é mencionada no "Livro dos Mortos", como aquela que assegura a passagem do defunto para a outra vida. Também, o linho que envolvia a múmia eram tecidos por Neith. Desta forma, as múmias ficavam sob sua proteção. Sendo assim, Neith é uma das Deusas tutelares da morte e exerce função no renascimento da alma. Em um mito, Neith é convidada por outros deuses para julgar no conflito entre Seth e Hórus sobre quem deveria herdar o trono do Egito, em função de sua grande sabedoria. É reconhecida aqui como a "Mãe Anciã". Ela sugeriu que Hórus fosse feito rei e que Seth deveria receber duas Deusas semíticas como prêmio de consolação. E, assim foi feito. No período Saíta (664-525 a.C.), tornar-se uma Deusa Celeste, "Senhora do Céu, a que reúne os deuses", como Nut e Hator. Nesse época, graças à importância do comércio de lã e à acentuada tendência para um certo arcaísmo artístico-cultural, a deidade que melhor correspondia ao espírito da glória do passado que se pretendia manifestar era justamente Neith, a padroeira das artes domésticas. Passada a Renascença Saíta (664-525 a.C./XXVI dinastia), durante o Período da Primeira Dominação Persa (525-404 a.C./XXVII e XXVIII dinastias), Neith permance como principal padroeira da monarquia egípcia. Plutarco visitou o grande templo de Neith em Sais, chamado Sapi-meht, e lá leu a inscrição:"Sou tudo o que já existiu, existe e que virá a existir. Nenhum mortal até hoje foi capaz de erguer o véu que me cobre". Parte desse santuário era uma escola de medicina chamada "A Casa da Vida" Essa escola era cuidada pelos sacerdotes de Neith, que eram médicos, especialistas em obstetrícia.

Neith era a divindade das ervas, magia, cura, conhecimentos místicos, rituais e meditação. Era a patrona das artes domésticas, tecelagem, caça, medicina, guerra e armas. Era também considerada a protetora das mulheres e do casamento. As egípcias conheceram um mundo em que a mulher não era nem adversária, nem serva do homem. O segredo de viverem a plenitude como esposas, mães, trabalhadoras, ou como iniciadas nos mistérios do templo, sem renunciar a sua identidade em favor do homem, reside na forte presença das Deusas, que lhes davam um modelo claro de comportamento para todas as mulheres. Se todos nós humanos, fomos criados à imagem e semelhança de um criador e só há um deus masculino, baseada em que imagem foram criadas as mulheres? Sabemos que os meninos, fazem de seus pais modelos de comportamento. Se vives em uma cultura onde só há um deus masculino e nenhuma Deusa, aonde está o modelo feminino? Como podem as meninas aprender a ser mulheres sem a Deusa? Neith chega até nós para nos dizer que é hora de levantarmos nossos véus e nos conhecermos verdadeiramente. Quando você se olhar no espelho, poderá ver-se com a cabeça de uma górgona coberta de serpentes. Entretanto se olhar novamente com os olhos do discernimento poderá visualizar sua própria beleza imortal. Hoje, nós mulheres, somos obrigadas a desenvolver os aspectos masculinos e patriarcais, para sermos aceitas no mundo dos homens. Entretanto, isso não implica em desistir do seu "ser" feminino. A própria Mãe Natureza se encarrega de nos lembrar quem somos quando damos à luz a uma nova vida, experiência tão profunda ancorada em nossa existência biofísica, que somente em casos muito raros passa desapercebida. É neste mágico momento, que a mulher pode experimentar a si mesma como criadora e como fonte de vida, irrefutavelmente e em uma profundidade que torna superficiais todas as atitudes equivocadas da sua consciência. Mas, até nesta hora, a mulher moderna, pode permanecer oculta entre véus, por medo profundo do Feminino, com medo dela própria, com medo da sua incompreensível natureza feminina. Experienciar a si mesma, com a ajuda da Deusa, nos fará ver com clareza a totalidade da humanidade como uma unidade dos aspectos masculinos e femininos.

Rosane Volpatto (REPUBLICADO)

sábado, 18 de setembro de 2010

SENHORA DA LUZ


Amaterasu Omi Kami, a senhora da luz celestial

“O brilho da Deusa do Sol preencheu o Universo e todas as divindades festejaram alegremente.”
Pergaminho japonês do séc VIII


Na maioria das culturas e línguas modernas (com exceção do alemão), o Sol é considerado um arquétipo masculino. No entanto, nem sempre foi assim. As religiões antigas de várias partes do mundo reverenciavam o Sol como uma Deusa doadora da vida. Com o passar do tempo, a perseguição dos arquétipos divinos femininos e o predomínio das religiões e valores patriarcais trouxeram uma nova hierarquia cósmica. O Sol passou a ser adorado como o Pai Celeste, enquanto a Terra era a Mãe, fertilizada pelos seus raios e calor. Somente os japoneses, escandinavos e alguns povos nativos (norte-americanos, esquimós e australianos) preservaram a memória ancestral dos poderes geradores e mantenedores da vida dos raios solares como sendo atributos de uma deusa, e não de um deus. Entre as deusas solares, sobressai-se Amaterasu, considerada a progenitora da família real japonesa e o símbolo da unidade cultural do povo.

As escrituras xintoístas dos primeiros séculos descrevem Amaterasu como a ancestral divina primordial, a senhora do brilho celeste e do calor solar, padroeira da agricultura e da tecelagem. Às margens do rio Ise Wan, encontra-se um templo simples, de madeira, sem imagens, que guarda o sagrado espelho com oito braços da deusa e para onde milhares de peregrinos levam suas orações e oferendas. Considerada a responsável pelo cultivo dos campos de arroz, pelos canais de irrigação, artes têxteis e preparo da comida, Amaterasu é reverenciada até hoje no nascer e no pôr-do-sol, nos altares dos templos e das casas, principalmente pelas mulheres mais idosas.

Em seu mito, Amaterasu é descrita como uma deusa radiante e bondosa, invejada por seu irmão Susanowo, o Deus do Tufão, que passou a desrespeitá-la e a destruir suas criações. Após agüentar a destruição das lavouras de arroz e a dessacralização de seus templos, Amaterasu ficou tão magoada com a morte de algumas mulheres, violentadas por seu irmão, que se enclausurou em uma gruta, recusando-se a sair. Alarmados com o fenecimento da vegetação e o frio e a escuridão que se espalharam sobre a Terra, as outras divindades tentaram encontrar um meio para trazer a Deusa de volta. Oito mil deuses reuniram-se na frente da gruta fazendo muito barulho, enquanto Uzume, a deusa xamânica da alegria, fazia todos rirem com suas brincadeiras e os movimentos lascivos dos seu volumoso ventre nu.

Curiosa com o motivo da algazarra e das risadas, Amaterasu abriu os véus que cobriam a entrada da gruta e sua figura refletiu-se em um enorme espelho de cobre, ali colocado pelas divindades. Ao se deparar com a linda imagem no espelho, Amaterasu sentiu-se enfeitiçada por sua própria beleza e permaneceu estática, em contemplação. Rapidamente, o Deus da Montanha fechou com rochas a entrada da gruta, enquanto deuses e mortais cantavam louvores ao esplendor de Amaterasu. Comovida, ela cedeu aos pedidos e deixou-se conduzir de volta ao seu palácio dourado. De lá, Amaterasu continua vigiando a Terra e suas lavouras e atende aos pedidos e orações, principalmente das mulheres que sofreram alguma violência da parte dos homens.

Refletindo sobre o significado oculto deste mito, podemos perceber o antagonismo entre as polaridades representadas por Amaterasu (ordem, dignidade, bondade) e Susanowo (rebelião, maldade, violência). O conflito entre o invejoso Deus do Tufão e a ordem celeste, pertencente à sua irmã, seria uma metáfora para o confronto entre duas tradições religiosas ou a descrição dos poderes destruidores da tempestade, prejudicando a abundância das colheitas.

Na visão feminista, as atitudes de desacato de Susanowo são vistas como demonstrações do ressentimento masculino que não aceita nem respeita a ordem e autoridade feminina, seja divina ou humana. O afastamento da deusa e a decorrente aridez e escuridão sobre a Terra demonstram a importância vital do princípio feminino, que deve ser reconhecido, respeitado e honrado.

O mito de Amaterasu alerta os homens para nem ofender nem prejudicar as mulheres, enquanto para elas o incentivo é para estabelecer e defender seus limites, evitando assim abusos e violências.

Para restabelecer a ordem natural e social, é vital que cesse a destruição da Natureza e a violência masculina contra as mulheres. Conscientes do seu valor e da sua força, mulheres de todos os lugares e crenças deverão sair dos seus esconderijos e projetar sua luz e seu amor para apaziguar e iluminar a Terra.

Mirella Faur

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

BABA YAGA , A VELHA MULHER DE SABER



Caminho pela floresta
E falo intimamente com os animais
Danço descalça na chuva
Danço nua
Viajo por caminhos
Que eu mesma faço
E da maneira que Me convém
Meus instintos e Meu olfato são aguçados

Expresso livremente minha vitalidade
Minha alegria pura e exuberante
Para agradar a Mim mesma

Porque é natural
É o que tem de ser
Sou A selvagem e jubilosa energia vital
Venha e junte-se a Mim


Baba-Yaga é uma velha, muito velha, que vive em uma cabana sobre pés-de-galinha. Ela se alimenta de ossos humanos moídos em seu pilão, mas há quem diga que também come criancinhas com seus dentes de ferro. E voa dentro de um almofariz de prata, muito veloz. Contam ainda que o rastro de cinzas que deixa pelo céu, rapidamente a danada vai apagando com sua vassoura.
Importante figura no imaginário do povo russo, Baba-Yaga está presente em muitos contos tradicionais, no caminho de Vassilissa, a bela, ou do destemido Príncipe Ivan, como nas bilinas (narrativas em verso) de grandes poetas românticos, entre eles, Gogol, Puchkin, Liermontov. Igualmente na música clássica daquele país, alguns compositores se dedicaram a fazer-lhe um “retrato sonoro”: temos três poemas orquestrais com Dargomíshky, Balakirev e Liadov; ela também aparece na suíte Quadros de uma Exposição, de Mussorgsky, e no Álbum para Crianças, de Tchaikovsky. Talvez, a primeira antologia de literatura russa de tradição oral, que o público de língua portuguesa teve acesso, fora feita por Alfredo Apell, nos idos da década de 1920. No Brasil, a bruxa aparece na história de encantamentos “A princesa-serpente”, na coletânea Contos populares russos organizada por J. Vale Moutinho (Nova Crítica, 1978 e Princípio, 1990), mas coube à escritora Tatiana Belinky o resgate mais bem divulgado como literatura para crianças: a velha Yaga e a magia das skáskas (narrativas maravilhosas) estão em Sete contos russos (Companhia das Letrinhas, 1995). Mais recentemente, foram publicados, em três volumes, os Contos de fadas russos, organizados por Aleksandr Afanas'ev, a partir de 1855, com o título Narodnye russkii skazki, base destes trabalhos e outras formas adaptadas (Landy, 2002 e 2003).
Quase sempre, Baba-Yaga é a temível bruxa, a malvada, la maliarda. Às vezes, ela parece ser apenas uma grande conselheira ou a guardiã de muitos segredos, moradora da escuridão numa densa floresta. Sob esta faceta, Baba-Yaga seria assim como a representação da Mãe-Natureza, igualando-se às antigas deusas, uma divindade com poderes sobre a vida e a morte porque rico em mistérios é seu perfil. Contudo, nossa maneira apressada de encarar as realidades imaginárias acomodou-se sobre a lógica a dividir o mundo em partes e posições irreconciliáveis. Quando se pensa em bruxas, evocam-se as fadas e uma eterna rivalidade, ou seja, a luta entre o Bem e o Mal.
Ora, a designação “bruxa” dada às velhas sábias surgiu muito antes do cristianismo lançar sua caça à elas, e referia-se a uma casta de sacerdotisas de um sistema religioso antigo e diferente, com caracteres próprios ao paganismo: uma religião de culto à Terra. Durante a baixa Idade Média (até meados de 1400), as bruxas eram tidas em consideração pelos campônios, aldeões e demais homens das vilas. A bruxaria era, para o Clero e a Coroa, uma simples superstição e, de modo algum, estava associada aos poderes do Mal. Reconhecidamente, as velhas que prestavam serviços para toda a comunidade na condição de parteiras, curandeiras, conselheiras, eram bruxas. Acreditava-se (uma tradição que ainda hoje se mantém) que essas mulheres tinham poder e influência sobre o corpo de outras pessoas e podiam curar doenças, bem como havia a crença de que sua magia e outras formas de projeção podiam favorecer a boa colheita. Com suas ervas milagreiras, a antecipação do futuro e outras simpatias, as bruxas eram respeitadas. A Medicina era ainda uma ciência incipiente, atendendo prioritariamente às camadas mais altas da sociedade medieval, como a nobreza e o clero; mesmo assim, os resultados a que chegava eram menores e mais incertos que os milagres operados pelas velhas sábias do povo.

No entanto, com a crise que a igreja medieval enfrentou junto às classes populares, as bruxas acabariam por cair em desgraça. Política e religião uniram forças e passaram a difundir novas imagens e idéias a respeito do curandeirismo e outras superstições relacionadas às velhas. Tornaram-se agentes do Mal, foram demonizadas dentro dos tribunais, em oposição a um sistema que representava a visão do Bem. Como portadoras de uma maldição divina, as bruxas se transformaram ideologicamente em consortes do próprio Diabo — ao mesmo tempo em que, na iconografia da época, o anjo soberbo ganhava novos contornos, assemelhando-se ao traçado animalesco e profano do antigo deus Pã. Fora criado igualmente o conceito de sabá, a grande festa orgíaca em que a devassidão, a gula e a beberagem tomavam a cena, gerando terror e histerismo entre o povo.

O velho conselho de uma bruxa não continha mais sabedoria, tornou-se um maledicente sussurro como um vento sequioso, frio e corruptor. E, entre os véus e alguma penumbra da fantasia, surgiram voláteis fadas, numinosas entidades, obrigando as mulheres-bruxas a esconderem-se em refúgios cada vez mais ermos. Os contos populares de magia são pródigos nas imagens do sítio abandonado, da alta torre, do castelo debaixo da montanha ou imerso no mar, como a casa perdida no meio da floresta em que ninguém ousa penetrar.

Vassilissa, a Formosa, andou e andou, e só ao entardecer do dia seguinte ela chegou à clareira onde ficava a cabana da Baba-Iagá. A cerca em volta dessa isbá era toda feita de ossos humanos, encabeçados por crânios espetados neles, com olhos humanos nas órbitas. E o trinco do portão era uma boca humana cheia de dentes aguçados. E a casinha era construída sobre grandes pés de galinha. (Belinky 1996: 25-6)
Longe do convívio humano, Baba-Yaga tem o domínio pleno e solitário da floresta, suas árvores e as sombras, revelando-se como uma das manifestações do arquétipo feminino da Grande-Mãe, com quem, em última instância, todos buscam um consolo ou ajuda. O encontro de Vassilissa com ela guarda certas semelhanças com uma versão primitiva pouco conhecida do conto de O Chapeuzinho Vermelho, que remete não apenas a um rito de passagem, mas à transmissão de poderes da mulher velha para a jovem (Kaplan, 1997).

É necessário um período de convivência naquela cabana e abandonar os temores e a curiosidade infantis, para que uma nova aprendizagem se estabeleça.
É ilustrativo o diálogo com Vassilissa, a respeito dos três cavaleiros que a menina vira passar (o branco, o rubro e o preto), quando se dirigia à cabana sobre pés-de-galinha. A velha responde que eles respectivamente são “meu dia, minha tarde, minha noite”. Não poderia se expressar de outra maneira, não fosse a verdadeira senhora da passagem do tempo. “Podemos chamá-la de Grande Deusa da Natureza”, afirma Marie-Louise von Franz, mas “obviamente, com todos esses esqueletos em volta de sua casa, ela é também a Deusa da Morte, que é um aspecto da natureza” (1985: 208). Baba-Yaga compreende igualmente os dois mistérios extremos da Vida, o nascimento (criação) e a morte (destruição).

A Grande Mãe nem sempre é Boa Mãe. Na escala grandiosa, o seu aspecto negativo, devorador e asfixiante, denomina-se a Mãe Terrível [...] Nos mitos, aparece como a mãe devoradora que come os próprios filhos. Conhecemo-la como a cruel Mãe Natureza, que procura repossuir toda a vida — toda a civilização — com a finalidade de colocar tudo de novo dentro do ventre primevo
. Como terremoto, abre literalmente o ventre para sugar o homem e suas criações de volta a si mesma. (Nichols 1995: 105)

Além de suas qualidades dóceis e férteis, o arquétipo da Grande-Mãe simboliza a destruição necessária para uma nova ordem. O sorriso malévolo de Baba-Yaga pode ser comparado com inúmeras representações de um tipo de mãe-fera, como é o caso da deusa Kali da tradição hindu. Sedenta de sangue, Kali pode surgir inesperadamente diante de seu expectador com a língua vermelha estirada para fora — antevendo o prazer da devoração.

Do bosque saiu a malvada Baba-Iaga. Viajava dentro de um almofariz e segurava na mão o pilão e a vassoura.

— Cheira-me aqui a carne humana! — suspeitou a terrível bruxa.

Vassilissa estava tão aterrorizada que se sentiu desmaiar. Tudo em volta era sinistro e Baba-Iaga tinha um ar ameaçador. Mas resolveu encher-se de coragem. Já que ali estava, pelos menos ia tentar a sorte e pedir ajuda àquela horrível bruxa. Assim, aproximou-se da velha, inclinou-se e disse:

— Olá, avozinha! As minhas irmãs mandaram-me vir ter contigo, para te pedir lume. (Beliayeva 1995: 81)

Quando nos depararmos com o temível, ou mesmo com o nariz e as rugas de Baba-Yaga, intimamente sabemos algo de sua força e sua ancestralidade mágica.

Tratá-la com respeito é o primeiro passo para conquistar respeito em troca. Quando Vassilissa encara a feiticeira com sinceridade, sem soberba ante o perigo, assegura as chances para uma cumplicidade e convivência pacífica com a velha.(nota pessoal: é muito interessante tratar não apenas as Velhas Deusas mas tambem as mulheres mais velhas com muito respeito devido a sua experiência que não advem da intrução tradicional) Não cair em sua ira devoradora significa ter acesso aos conhecimentos dessa potestade arquetípica. Durante a estadia na isbá da bruxa, há de recuperar essa memória, os segredos de quem sabe ouvir a música das correntezas subterrâneas. Ao mesmo tempo em que vai demonstrando sinais de afeição, a menina reconhece na outra o saber, ainda que inconsciente, na verdade é seu. Afinal, que imagem o espelho de seus olhos refletirá?

Enquanto Baba-Yaga jantava, Wassilissa ficou ali perto, silenciosa. Baba-Yaga disse: “Por que é que você está me olhando sem dizer nada? Você é muda?”
A menina respondeu: “Se pudesse, gostaria de lhe fazer algumas perguntas.”

“Pergunte”, disse Baba-Yaga, “mas lembre-se, nem todas as perguntas são boas. Saber demais envelhece!” (von Franz 1985: 206)

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