Em nome da Mãe: o arquétipo da Deusa e sua manifestação nos dias atuais.
Rosalira OLIVEIRA
Rosalira OLIVEIRA
“Pois a Grande Deusa, cuja fronte é coroada com as Torres do Impossível, move-se através das gerações de um crepúsculo ao outro e não há fim para o seu longo viajar de revelação a revelação”. John Cowper Powys
O artigo aborda várias facetas do arquétipo da Grande Mãe, desde as teorias arqueológicas acerca da sua adoração em tempo pré-históricos até o seu retorno no momento atual. Este retorno é aqui interpretado como parte da busca por outros modos de relacionamento entre a humanidade e a natureza.
Palavras chaves: Grande Mãe, Religião, Arqueologia, Mitologia, Ecologia
Introdução: o retorno do divino feminino:
O fim do século XX assistiu a um acontecimento inesperado: o renascimento de uma religião considerada morta há tanto tempo que a humanidade quase se esqueceu que ela um dia existira. Essa religião é a adoração de uma Grande Deusa, vista, simultaneamente, como Senhora da Vida, da Morte e da Regeneração.
O culto do divino feminino é um dos mais antigos que se tem notícia. O primeiro elemento cultuado pelo homem foi a Terra. E a Terra, dizem os mitos, foi gerada por ela mesma. A vida surgia da sua carne rasgada e jorrava das suas profundezas. Era ela que produzia os frutos, os animais e o próprio homem. Ela era a mãe de todas as coisas vivas e também a responsável pela morte. Afinal, se a vida era percebida como um “ab uterum”, um emergir do ventre da Terra, a morte representava uma volta, um regresso “ad uterum”, para que um novo nascimento pudesse acontecer. Assim ocorria com a semente, assim também com o homem. Os ciclos de morte e renascimento; criação e destruição; observados na natureza, eram sentidos como igualmente válidos para a trajetória do homem no mundo. Para a humanidade do início dos tempos, não havia separação entre o mundo humano e o mundo natural e todos compartilhavam o mesmo destino como filhos da Terra. É exatamente em respeito a esse vínculo que a arqueóloga Marija Gimbutas, considera importante esclarecer que “a Deusa era a Mãe mais-do-que-humana. Se for usado o termo Grande Mãe, deve ser entendido como a Grande Mãe Universal cujos poderes se difundem por toda a natureza, por toda a vida humana, por todo o mundo animal, por toda a vegetação”. (1998: 54)
Essa Deusa, também conhecida como a “Senhora dos dez mil nomes”, foi adorada por vários povos antigos: Na Anatólia e na Creta minóica era chamada de Cibele; No Egito era Nut; na África seu nome era Nana Buluka e em Canaã era conhecida como Astherah ou Ishtar. Ainda que fosse evocada por diferentes nomes, em todos os lugares representava o princípio criador e simbolizava a unidade essencial de toda a vida na Terra. Seu culto foi destruído e, paulatinamente, substituído. Primeiro pelos deuses guerreiros e depois pelo monopólio de um Deus único.
Esse processo de mudança de mentalidade encontra-se refletido nos mitos. Um bom exemplo é a formação do panteão grego. Bem antes dos mitos clássicos tomarem forma e serem escritos por Homero e Hesíodo – no século VII a.C. – já havia uma rica tradição oral de formação de mitos. Muito provavelmente, estes mitos refletiam o resultado do processo de conquista da região da Anatólia pelos indo-europeus. Neles, são evidentes:
Os vestígios dessa tradição primitiva nos mitos posteriores, os quais refletem o amálgama cultural de três ondas de invasores bárbaros: os iônios, os acádicos e, finalmente, os dórios, os quais penetraram na Grécia de 2.500 até 1.000 a.C. Todos levando consigo uma ordem social patriarcal e o respectivo deus dos trovões, Zeus. (HIGWHATER J. 1992:39).
Desse modo, a Grande Mãe foi primeiro, associada a um Deus masculino – como filha, mãe ou consorte – e, finalmente, banida da psique humana pela predominância do Deus único apregoado pelas religiões monoteístas. Esse processo, ocorrido em ritmo e intensidade diferentes para cada povo, se iniciou há cerca de 5.000 anos atrás e moldou a forma de ver a realidade que é ainda dominante nos nossos dias. O rosto da Deusa, porém, permaneceu oculto sobre o véu da história e reaparece agora. Atualmente, através do trabalho de arqueólogos, mitólogos, artistas, cientistas, historiadores da arte, antropólogos e filósofos, a evidência fragmentada da religião da Deusa está tomando forma e Ela está voltando. Com isso ressurgem também múltiplas formas de culto ao divino feminino.
Qual a razão deste interesse? Por que falamos em retorno da Deusa? O que significa esse retorno? O que teria a Grande Deusa cultuada no prelúdio da nossa história a dizer aos homens e mulheres do mundo atual? Penso que uma das explicações reside no fato de que as recentes descobertas a respeito da Deusa e Suas culturas colocam em questão os pressupostos básicos daquilo que já foi descrito como:
Qual a razão deste interesse? Por que falamos em retorno da Deusa? O que significa esse retorno? O que teria a Grande Deusa cultuada no prelúdio da nossa história a dizer aos homens e mulheres do mundo atual? Penso que uma das explicações reside no fato de que as recentes descobertas a respeito da Deusa e Suas culturas colocam em questão os pressupostos básicos daquilo que já foi descrito como:
Um sistema de cinco mil anos, no qual o mundo foi concebido como uma pirâmide, regido do alto por um Deus masculino, com criaturas feitas à sua imagem (homens), por sua vez divina e naturalmente ordenados para governar mulheres, crianças e o resto da natureza. (EISLER, R. 1998:12).
Neste sistema, que predomina até os dias atuais, o mundo é concebido como uma espécie de cadeia de comando na qual o Deus-pai delega ao homem a tarefa de governar as suas outras criaturas, tidas como inferiores. Um bom exemplo está na “doutrina das causas finais” que, numa de suas versões, afirma que o mundo foi projetado por Deus para um determinado fim: o bem-estar da humanidade. Sendo assim, caberia ao homem o papel de “agradecer essa dádiva e, em troca, aceitar exercer o controle do planeta, uma aceitação que foi recomendada com instância pelos judeus já em tempos antigos” (EHRENFELD. D. 1992:05). Esta doutrina se fundamenta em três idéias centrais, que orientam, até hoje a nossa relação com o mundo não humano: a que nos autoriza a usar uma natureza criada para nos servir; a que nos permite exercer amplamente o nosso “controle” e aquela que afirma a superioridade humana em relação à natureza.
De modo radicalmente diferente, as culturas da Deusa concebiam o mundo natural e o mundo humano como interligados na grande teia da vida, nada menos que o Seu próprio corpo. A crítica lançada pela Deusa a esse sistema reverbera e atinge todos os setores da nossa “civilização”: relações de gênero, cosmologia, relação com o corpo, com o sexo, com a natureza, conceito de ciência, etc. No seu simbolismo, homens e mulheres têm encontrado inspiração para propor um mundo diferente, um mundo no qual a posse e o domínio não sejam as únicas formas de relacionamento nem entre os seres humanos, nem entre nós e aqueles com quem partilhamos a vida na Terra. Mas, antes de aprofundarmos essa discussão exploremos ainda que brevemente a fragmentada história da Grande Deusa e das Suas culturas.
A Deusa e Suas culturas:
Os estudiosos costumam situar as origens do culto da Deusa no período Paleolítico (por volta de 100.000 a 10.000 a.C.), também chamado “período dos caçadores/coletores”. As estátuas da Deusa representada como uma mulher com seios e nádegas pronunciadas – as chamadas “Vênus Paleolíticas” – estão entre as primeiras representações do divino que a humanidade elaborou. Algumas dessas imagens datam de 30.000 anos atrás. Tradicionalmente vistas como ligadas a algum culto antigo de fertilidade, elas foram reinterpretadas por Marija Gimbutas como representações dos poderes do mundo geradores da vida, precursoras muito antigas da Grande-Mãe que ainda será reverenciada em épocas históricas. No seu entendimento, as imagens das “Vênus”, com suas características femininas – seios, ventre, vulva, quadris – deliberadamente exageradas, constituem:
Uma representação religiosa - a reificação da Geradora da Vida. Aquelas partes do corpo que, aos nossos olhos, parecem exageradas ou grotescas são as suas partes mais importantes, mágicas e sagradas; a fonte visível e produtiva da continuidade da vida em seus diversos aspectos e funções. (1998: 54).
Mas não é só no início da aventura humana que a Deusa se faz presente. A Grande Mãe do Paleolítico atravessa toda a chamada “revolução agrícola” para firmar, no período seguinte, sua adoração. O Neolítico é considerado um momento de grande prestígio do feminino, fato atestado pelo impressionante número de esculturas, gravuras e outras imagens representando imponentes personagens femininos, cujo poder e natureza divina se afirmam nitidamente. É ainda Marija Gimbutas quem percebe nesta continuidade da representação feminina, “uma única linha de desenvolvimento de um sistema religioso, desde o Paleolítico Superior, passando pelo Neolítico, pelo Calcolítico e pela Idade do Cobre baseado em uma organização matrifocal”. (IDEM: 67).
Realmente, adoração da Deusa e matrifocalidade parecem caminhar juntas. Caracterizado pelo surgimento da agricultura, o período Neolítico marca um momento de extrema valorização dos aspectos positivos da Grande-Deusa como deusa da fecundidade, criadora da vida e, pensam historiadores e arqueólogos, também da mulher vista como a criadora no âmbito do humano. Afinal, o culto da Deusa-Mãe não poderia “deixar de ter conseqüências sobre as relações do homem e da mulher. Esta era o sucedâneo humano daquela e o homem do Neolítico adorava um deus com formas femininas”. (BADINTER, E. 1986:67) Mesmo levando-se em consideração o fato de que a concepção da sacralidade da maternidade e da mulher já se fazia presente desde o período anterior, pode-se inferir que a descoberta da agricultura reforçou consideravelmente essa associação vinculando simbolicamente a fertilidade da terra à fecundidade feminina. Na percepção dos nossos ancestrais, as mulheres
se tornaram, então, as responsáveis pela abundância das colheitas, uma vez que conheciam e compartilhavam do mistério da Criação. Esse modo de pensar constitui uma expressão daquilo que Mircea Eliade denominou “consciência agrícola”, uma concepção de mundo que tem na percepção de uma solidariedade mística entre a fertilidade da terra e a fecundidade da mulher uma das suas intuições fundamentais. Nesta concepção, o próprio trabalho agrícola é um rito, já que além de ser um ato realizado sobre o corpo da Terra-Mãe, implica na integração do lavrador com os Seus ciclos. Ainda segundo Eliade, a consciência agrícola enseja uma “religião cósmica”, fortemente ancorada no vínculo mágico que une agricultura e procriação, na qual os ritos destinados a assegurar a fecundidade do solo são freqüentemente realizados pelas mulheres. São exemplos de tais ritos: a nudez, as orgias, as gotas de leite materno derramadas no campo, a semeadura ritual, etc. Em alguns casos, apenas as mulheres grávidas podem participar, em outros apenas as virgens e em outros, ainda, apenas as casadas. Todos eles reafirmam a crença nesse vínculo cósmico, nessa solidariedade profunda em virtude da qual:
A fecundidade da mulher influencia a fertilidade dos campos e a opulência da vegetação, por sua vez, ajuda a mulher a conceber. Os mortos colaboram com uma e com a outra, esperando dessas duas fontes de fertilidade, a energia e a substância que os reintegrarão ao fluxo vital. (IDEM: 70).
se tornaram, então, as responsáveis pela abundância das colheitas, uma vez que conheciam e compartilhavam do mistério da Criação. Esse modo de pensar constitui uma expressão daquilo que Mircea Eliade denominou “consciência agrícola”, uma concepção de mundo que tem na percepção de uma solidariedade mística entre a fertilidade da terra e a fecundidade da mulher uma das suas intuições fundamentais. Nesta concepção, o próprio trabalho agrícola é um rito, já que além de ser um ato realizado sobre o corpo da Terra-Mãe, implica na integração do lavrador com os Seus ciclos. Ainda segundo Eliade, a consciência agrícola enseja uma “religião cósmica”, fortemente ancorada no vínculo mágico que une agricultura e procriação, na qual os ritos destinados a assegurar a fecundidade do solo são freqüentemente realizados pelas mulheres. São exemplos de tais ritos: a nudez, as orgias, as gotas de leite materno derramadas no campo, a semeadura ritual, etc. Em alguns casos, apenas as mulheres grávidas podem participar, em outros apenas as virgens e em outros, ainda, apenas as casadas. Todos eles reafirmam a crença nesse vínculo cósmico, nessa solidariedade profunda em virtude da qual:
A fecundidade da mulher influencia a fertilidade dos campos e a opulência da vegetação, por sua vez, ajuda a mulher a conceber. Os mortos colaboram com uma e com a outra, esperando dessas duas fontes de fertilidade, a energia e a substância que os reintegrarão ao fluxo vital. (IDEM: 70).
A solidariedade dos mortos – enterrados como grãos – com a fertilidade e a agricultura reforça a onipotência da Terra-Mãe e, com ela, o prestígio das mulheres. A própria atividade agrícola é uma prática regenerativa. Através dela a semente enterrada sob a Terra volta à vida. É por conta dessa afinidade, e da natureza ctônica de ambos, que os cultos da fertilidade vinculam-se, de modo profundo, aos cultos mortuários. Neste complexo simbólico, tudo que toca à vida e, portanto, à riqueza, diz respeito à mulher. Fonte da fertilidade ela é também a curadora que conhece as ervas e a protetora que guarda o sono dos mortos até que estejam prontos para retornarem.
Ainda que não restem grandes dúvidas sobre a organização social pacífica e sobre o prestígio desfrutado pela mulher neste período – seja como responsável pela fertilidade do grupo, pelas curas medicinais ou pelos ritos funerários – muito se discute a respeito do seu real poder político. Alguns estudiosos julgam que o papel de destaque ocupado pela mulher na vida religiosa não implica numa posição semelhante na esfera civil. Para eles, a expressão “ela reina, mas não governa” constitui uma síntese adequada do status da mulher nas sociedades do Neolítico. Já outros se concentram na preponderância da Deusa-Mãe sobre os demais Deuses e na reverência ao feminino na criação da vida e chegam a utilizar o termo “matriarcado” para caracterizar estas sociedades. Esta é uma discussão bastante antiga. A hipótese de um “matriarcado primitivo”, que antecederia as sociedades históricas patriarcais, foi exposta no século XIX por Johann Jakob Bachofen. Sua teoria que inicialmente teve grande aceitação caiu em descrédito já nos primórdios do século XX. A principal crítica feita a Bachofen dizia respeito à falta de comprovação histórica das conclusões por ele apresentadas. Outro fato que deporia conta à hipótese do matriarcado primitivo era a total inexistência de sociedades históricas – mesmo aquelas consideradas mais primitivas – nas quais vigorasse este tipo de modelo. No centro dessa discussão, parece haver uma espécie de confusão semântica: enquanto o termo “matriarcado” diz respeito a um “governo feito pelas mães” ,os termos “matrifocal” e “matricêntrico” referem-se à idéia de uma sociedade centralizada na mulher, mas não obrigatoriamente governada pela mulher. Já o termo “patriarcado” significa literalmente “governo feito pelos pais”.
Mesmo a intelectualidade feminista contemporânea, critica a teoria do “matriarcado original”. Como muitos estudiosos fazem questão de ressaltar, a noção de “matriarcado” (assim como o seu oposto) tem como modelo subjacente, a idéia de uma sociedade estruturada a partir da dominação de um sexo pelo outro. Desse modo, aquilo que não é patriarcado, deve, necessariamente, ser matriarcado. Esse raciocínio é, como explica Riane Eisler, a conseqüência de uma sociedade dominadora que vê como “naturais” a existência de uma relação hierárquica entre homens e mulheres. A verdadeira alternativa ao patriarcado – diz ela – não é o matriarcado, mas sim, “a alternativa, agora revelada como a direção original da nossa evolução cultural, a de uma sociedade de parceria: uma maneira de organizar as relações humanas na qual a diversidade não é equiparada com inferioridade ou superioridade” (1998: 23).
Os intelectuais ligados ao movimento feminista desenvolveram, portanto, um modelo diferente para a cultura neolítica: o de uma sociedade matrifocal ou matrística. É este o modelo que emerge de trabalhos como os realizados por Marija Gimbutas, sobre as divindades da “velha Europa” e por James Meelart nas ruínas da cidade de Çatal Hüyuk na atual Turquia, entre outros. Estes autores têm sugerido que as sociedades do período Neolítico eram realmente culturas pacíficas e cooperativas, nas quais as mulheres ocupavam posições sociais importantes como sacerdotisas, artesãs ou chefes de clã matrilineares, e onde não se encontram registros de grandes diferenciações de status baseadas no sexo. Enfim, sociedades matrifocais, nas quais o pensamento e as práticas espirituais giravam em torno de uma Deusa-Mãe e onde a filiação era definida através da linhagem materna. Nestas sociedades, a Deusa não era um mito, uma lenda, ou mesmo um símbolo no sentido moderno do termo, mas uma realidade cósmica. Uma realidade que, ao reificar a ligação entre todo o mundo vivo e sacralizar o mistério da criação, tendia a enfatizar valores, como a cooperação e a convivência pacífica – seja entre os sexos, seja entre o homem e os demais seres, etc. – em detrimento de outros, como a dominação e força bruta. Tratava-se, isso parece inegável, de um mundo matricêntrico muito diferente das sociedades masculinizadas que lhe sucederam.
Uma virada mítico-histórica
A mudança de valores ocorreu em diferentes momentos. No caso das culturas situadas na região da velha Europa, o processo teve início por ocasião das primeiras invasões indo-européias. Esses povos nômades trouxeram consigo uma nova ordem social dominada pelos homens e por deuses masculinos que se reflete no panorama mitológico e religioso Até este ponto, “a era da predominância feminina na religião está documentada como contínua durante uns vinte e cinco mil anos” (GIMBUTAS, M. 1998: 38). Mesmo após a maior parte da Europa se tornar indo-europeizada, no período entre 4.500 e 2.500 a, C., com a consolidação do domínio dos invasores, os dois sistemas culturais continuaram mais ou menos fundidos com o sistema matrifocal funcionando como uma espécie de subcorrente. É o que afirma Junito Brandão em relação à situação grega. Nela, temos:
De um lado um panteão masculino (patrilinhagem), de outro, um panteão, onde as deusas superam de longe (matrilinhagem) os deuses e em que uma divindade matronal, a Terra-Mãe, a Grande Mãe ocupa o primeiríssimo posto, dispensando a vida em todas as suas modalidades: fertilidade, fecundidade, eternidade. (BRANDÃO, J. 1991:70).
Exemplos relativos à fusão e a convivência (quase nunca pacífica) entre estes dois sistemas podem ser encontrados em quase todas as mitologias européias. Em geral tal conflito é descrito, simbolicamente, como uma guerra, na qual os deuses recém-chegados enfrentam e dominam os antigos deuses, condenando-os a regiões obscuras ou admitindo-os de forma subordinada no panteão principal. Este conhecimento constitui parte da tradição repassada dentro da religião da Deusa, como comenta este entrevistado, praticante de uma das religiões da Deusa:
Várias tradições falam de uma guerra. Você vai ter uma guerra nos gregos onde os Deuses tiraram o lugar das Deusas. Nos nórdicos também. (...) Mas você vê que a mitologia reflete uma fase histórica, um período da história em que aconteceu essa difusão do patriarcado que entrou em guerra com as culturas matriarcais e o que a gente tem até hoje é um reflexo disso. Mas em todas elas, o patriarcado teve que conviver com o matriarcado e com seus Deuses mais antigos.
Uma outra forma de expressão deste conflito é o combate entre um campeão da ordem – um deus ou herói solar – contra um monstro, serpente ou dragão – uma criatura ctônica, filha da Deusa-Terra, ou às vezes a própria Deusa – cuja derrota marca o fim do mundo matricêntrico e do domínio da Grande Mãe. São exemplos desse arquétipo: a luta de Apolo com a serpente Píton entre os gregos; de Javé contra o Leviatã entre os hebreus; de Marduk contra Tiamat, entre os babilônios, entre outros.
Você tem, por exemplo, na Babilônia a figura de Marduk, que é um herói civilizador, então já não mais nem uma figura divina. Ele tem que matar um dragão e da carcaça desse dragão ele cria o universo. Esse dragão se chama Tiamat que é o nome da Grande Deusa. Então isso mostra uma subversão muito grande da mitologia da criação. E depois a gente vai ter um Deus único que já não precisa da Deusa para criar.
Descrita como o dragão primevo, Tiamat é a serpente marinha combatida por seu neto, Marduk, o qual depois de cortá-la em pedaços, passa a governar o mundo formado a partir dos pedaços do seu corpo. Observe-se a ambigüidade da narrativa mítica: por um lado, Marduk, ele próprio um filho da Deusa primordial. Por outro, ele dá origem a uma nova modalidade de criação não mais a geração, associada ao feminino, mas a morte e o desmembramento, associados ao poder masculino. Mais interessante ainda é o fato do corpo de Tiamat conservar o seu poder gerador, sendo apenas a partir dele Marduk pôde criar o mundo. Este combate repete-se em várias mitologias patriarcais, com as Deusas-Mães, ou a primeira geração dos seus filhos, sendo associadas a monstros que os novos deuses precisam derrotar para estabelecerem uma nova ordem. É o que Joseph Campbel denomina “difamação mitológica” e Highwater, classifica como “nada mais nada menos do uma conspiração mitológica” (1992:62). Na avaliação deste último, o protótipo dessa batalha entre os princípios feminino e masculino, deusa e deus, desordem e ordem, natureza e cidade reside no famoso confronto entre Zeus e a serpente Tifon, último filho de Gaia – a Deusa Terra. Segundo ele, uma condição para interpretar este mito em termos da atitude dos gregos em relação ao feminino é entender que, para a mentalidade helênica, Zeus era o inimigo do caos, o herói que defende os deuses contra a revolta selvagem identificada com as mulheres. Com sua vitória sobre Tifon ele assegurou o predomínio dos deuses patriarcais do Olimpo sobre a prole da Grande Deusa-Mãe, os primitivos Titãs. Desse modo, para Highwater, esse combate simboliza a “a ritualização de um conceito grego essencial: as mulheres personificam a natureza bruta – e a natureza representa o caos e a desordem” (IDEM: 66).
Descrita como o dragão primevo, Tiamat é a serpente marinha combatida por seu neto, Marduk, o qual depois de cortá-la em pedaços, passa a governar o mundo formado a partir dos pedaços do seu corpo. Observe-se a ambigüidade da narrativa mítica: por um lado, Marduk, ele próprio um filho da Deusa primordial. Por outro, ele dá origem a uma nova modalidade de criação não mais a geração, associada ao feminino, mas a morte e o desmembramento, associados ao poder masculino. Mais interessante ainda é o fato do corpo de Tiamat conservar o seu poder gerador, sendo apenas a partir dele Marduk pôde criar o mundo. Este combate repete-se em várias mitologias patriarcais, com as Deusas-Mães, ou a primeira geração dos seus filhos, sendo associadas a monstros que os novos deuses precisam derrotar para estabelecerem uma nova ordem. É o que Joseph Campbel denomina “difamação mitológica” e Highwater, classifica como “nada mais nada menos do uma conspiração mitológica” (1992:62). Na avaliação deste último, o protótipo dessa batalha entre os princípios feminino e masculino, deusa e deus, desordem e ordem, natureza e cidade reside no famoso confronto entre Zeus e a serpente Tifon, último filho de Gaia – a Deusa Terra. Segundo ele, uma condição para interpretar este mito em termos da atitude dos gregos em relação ao feminino é entender que, para a mentalidade helênica, Zeus era o inimigo do caos, o herói que defende os deuses contra a revolta selvagem identificada com as mulheres. Com sua vitória sobre Tifon ele assegurou o predomínio dos deuses patriarcais do Olimpo sobre a prole da Grande Deusa-Mãe, os primitivos Titãs. Desse modo, para Highwater, esse combate simboliza a “a ritualização de um conceito grego essencial: as mulheres personificam a natureza bruta – e a natureza representa o caos e a desordem” (IDEM: 66).
Entretanto, mesmo a vitória sobre as criações monstruosas da Grande Mãe revela-se insuficiente para selar a paz, seja no Olimpo seja na psique do homem grego. O tema da revolta das mulheres é recorrente nesta mitologia. Seja na representação das deusas, onde aparece, por exemplo, nas atitudes vingativas de Hera – uma Grande Mãe reduzida ao papel de consorte do Deus; na recusa de Deméter – a Senhora dos Grãos - de permitir que a Terra produza até que sua filha lhe seja devolvida ou, ainda, no total desrespeito de Afrodite – a Deusa asiática da fertilidade – às convenções do casamento patriarcal. Ele aparece também nas atitudes das mulheres mortais que lutam conta os ditames de um mundo masculino. É o caso, entre outros, das Amazonas, guerreiras dedicadas à virgem caçadora Ártemis; de Atalanta que desafia os homens no seu próprio campo de ação e só é vencida graças a um estratagema e de Medéia que escolhe como alvo da sua vingança aquilo que é mais importante para o homem dentro do esquema patriarcal – sua descendência. Estes e vários outros exemplos são expressões de uma tensão permanente que atravessa toda a produção mítico-poética helenística. E que, por tabela, embala ainda hoje os sonhos e pesadelos do homem ocidental.
O simbolismo da Deusa nos dias atuais
Ainda que documentada e ancorada em pesquisas realizadas em múltiplos campos – arqueologia, história, mitologia, história das religiões, etc. – a reconstrução sobre as culturas da Deusa tem, claramente, o caráter de uma hipótese de trabalho. Não podemos ter certeza do que pensavam e sentiam os nossos antepassados pré-históricos e nem é este é o ponto central da discussão. O ponto é que a recuperação da história das mulheres e a reconstrução do passado pela ótica feminina têm muito a dizer aos homens e mulheres de hoje. Pode oferecer uma alternativa para as relações entre os sexos no mundo contemporâneo e contribuir para criar novos padrões de relacionamento entre o homem e o mundo natural.
É exatamente como promessa de futuro que reaparecem o simbolismo da Grande Deusa e a história das culturas matrifocais. Ambos têm se revelado como uma fonte inesgotável de reflexão e de inspiração para muitas mulheres modernas. O símbolo da Deusa, como comenta Carol Christi:
Tem muito a oferecer às mulheres que lutam para liquidar aqueles estados de ânimo e aquelas motivações potentes, persuasivas e persistentes de desvalorização do poder feminino, de desconfiança na vontade feminina e de negação dos vínculos e do patrimônio cultural das mulheres que foram gerados pela cultura patriarcal. E visto que as mulheres estão lutando para criar uma cultura nova na qual são celebrados o poder, os corpos, a vontade e os vínculos das mulheres parece natural que volte à tona a Deusa como símbolo de renovada beleza, força e poder das mulheres. (mimeo)
Embora a Deusa não seja o equivalente da mulher, no seu simbolismo encontra-se presente muito daquilo que constitui o mais profundo do ser feminino, o que permite às mulheres uma identificação mais imediata com o arquétipo. Através desse processo de identificação, aspectos de suas vidas ignorados, marginalizados ou evitados pelas religiões patriarcais são resgatados e elas se tornam aptas a compreender e reverenciar a sacralidade da sua vida e do seu corpo. Como se pode perceber na fala abaixo:
O conceito de uma religião que venerava uma Deusa era surpreendente e poderoso. Tendo sido criada como judia, fui muito religiosa quando criança e prossegui minha educação judaica até um nível avançado. Mas, quando atingi o estágio de jovem adulta, ao final dos anos 60, algo parecia estar faltando. O movimento feminista ainda não havia renascido e eu desconhecia a palavra ’patriarcado’ mas sentia que a tradição, assim como se apresentava então, carecia de alguma maneira de modelos para mim enquanto mulher bem como de caminhos para o desenvolvimento do poder espiritual feminino
(...). A tradição da Deusa oferecia novas possibilidades. O meu corpo, agora, em toda a sua feminilidade, seios, vulva, útero e fluxo menstrual eram sagrados. A força primitiva da natureza e o intenso prazer da intimidade sexual assumiram papéis centrais como caminhos para o sagrado, em vez de serem negados, denegridos ou encarados como periféricos. (STARHAWK. 2001: 13).
O simbolismo da Deusa implica na aceitação da materialidade e da corporeidade da vida como sagradas. Como salienta Rachel Pollack, “encontramos o corpo da Deusa no nascimento, na menstruação e na alegria do sexo, mas o encontramos também na morte e na doença, uma vez que estas não são vistas como erros ou punições, mas como parte da existência”. (1998:48).De fato, aceitar o corpo como sagrado implica em lidar de outra maneira com a nossa própria corporeidade. Afinal, quando “consideramos Deus como perfeito, imortal e imutável, a morte torna-se uma violação, uma marca da nossa distância de Deus”. (IDEM: 49). Ao contrário, quando consideramos Deus ou a Deusa como algo encarnado nos mistérios da vida, a morte pode ser reinserida em seu lugar na dança cósmica e recuperar a sua sacralidade. Diferentemente do Deus-Pai transcendente, desincorporado e afastado da matéria, a Deusa tem um corpo que é o mundo físico: o céu, a terra, as águas e o submundo. Esta concepção do divino dispensa intermediações, a Deusa – a imanente – está em tudo e é tudo. Todas as coisas: das pedras às árvores passando pelos seres humanos são a Deusa, suas manifestações, suas muitas formas de existir. Ao invés do dualismo criador x criatura – característico das religiões patriarcais – temos aqui uma concepção que vê o divino como algo que está dentro da matéria física reforçando a importância da ecologia e do corpo.
O grande potencial de aglutinação inerente ao simbolismo da Deusa deu origem, nos últimos anos, a um movimento amplo e diversificado conhecido como “Espiritualidade Feminista”. No seu âmbito, muitas mulheres exploram o poder inerente ao sagrado feminino. Algumas delas atuam no contexto do Cristianismo ou do Judaísmo. Outras utilizam as tradições da Deusa provenientes de várias culturas distintas sem se identificarem obrigatoriamente com uma religião específica, e outras ainda, recriam a religião da Grande-Mãe buscando construir um enfoque adequado para os tempos modernos. A mais difundida dentre estas recriações é a Wicca – também conhecida como Bruxaria, Feitiçaria ou Religião da Deusa – que se afirma como uma espécie de reinterpretação da religiosidade do Neolítico, como declara este sacerdote:
A Wicca para mim é um resgate da experiência religiosa primeva. Aquela que se manifestou na escavação do primeiro túmulo humano, na produção plástica das estatuetas da Grande Mãe (as inúmeras Vênus européias e africanas) e nas pinturas rupestres. Daí a sua liberdade maior que as demais formas de Paganismo: ela pode transitar tranqüilamente por diferentes panteões, pois vê, em todos eles, um desenvolvimento arquetípico da mesma Deusa e do mesmo Deus.
Na thealogia da Wicca, a Deusa possui uma predominância marcante. Embora haja diferenças profundas entre as muitas tradições, em todas, Ela é vista como “a Criadora”, uma vez que, na sua concepção, a criação é um processo de nascimento no qual a Deusa prenhe de si mesma dá a luz ao mundo – incluindo o Deus, seu filho e amante – que é também ela mesma. Esta centralidade do culto à Deusa constitui a característica distintiva da Wicca, como explica esta sacerdotisa:
Quando você vai falar do Druidismo, por exemplo, você fala de uma religião da terra, mas você ainda vai ter um sistema mágico-solar, ou seja, ele é centrado, de certa maneira, no Pai. Ele respeita a Mãe, ele celebra a Mãe, mas ele não é centrado na Mãe. Quando você vai falar do Xamanismo é a mesma coisa, o conceito de Grande Espírito se sobrepõe a um conceito de Deusa. Quando você chega à Wicca, especialmente nas vertentes mais diânicas, a visão é diferente e a Deusa assume um papel preponderante. A Wicca é a religião da Deusa e do Consorte. É um caminho mágico lunar e feminino. Toda Wicca o é, a Diânica também, mas não só ela. Se não se tratar de um caminho lunar e feminino não é Wicca.
Mesmo assim, a Deusa, na perspectiva wiccana, não é concebida apenas como a mãe benevolente. Para seus adeptos, a criação é um processo contínuo, uma dança entre criação e destruição na qual formas antigas se dissolvem e novas são construídas. A veneração desse aspecto da Deusa funciona também como uma reação à concepção patriarcal do poder da mulher, vinculado exclusivamente à sua capacidade geradora.. Desta maneira, para as bruxas feministas, a Deusa é vista como:
A criadora do universo, mas também como destruidora, pois, no fundo, todos os atos de criação são também atos de destruição. Ela vem de muitas culturas. Ela é às vezes representada como o sol (luz) ‘ativo’ ao invés da lua (sombra) ‘passiva’. Ela é a guerreira que protege o Seu povo. Ela é Ereshkigal bem como Inanna. Ela é Kali, Ela é Venus, Ela é Freya. Todas as criaturas são Suas e a Terra é o Seu corpo. Suas energias estão ao nosso redor na forma de rios, raios e ventos, criando e destruindo constantemente.
Como “Mãe mais-do-que-humana” a Deusa sabe que, embora a vida deva ser preservada, esse imperativo não se refere à da vida individual, seja a de uma pessoa, seja a de uma espécie. Afinal, embora seja nossa mãe e nosso lar, a Terra também é ameaçadora, tanto doadora quanto tomadora de vida, conforme lembra esta entrevistada:
A Deusa não tem dó nem piedade da humanidade. Existe um jeito de encarar a Deusa no qual Ela é chamada “A preservadora”. Se Ela realmente precisar, ela vai cortar qualquer coisa da própria carne Dela e vai destruir o que quer que seja para que aquilo não continue destruindo o resto. Talvez, um dia, sejamos nós. E a Vida vai continuar em outras condições.
Percepção semelhante é expressa por James Lovelock, um dos proponentes da “teoria de Gaia”. Segundo ele, alguns ambientalistas, que gostam de pensar na vida na Terra como algo frágil e delicado ameaçado pela brutalidade do homem, se chocam com o que vêem quando olham o mundo através de Gaia. Nesse processo de deslocamento de um olhar antropocêntrico para uma forma mais integrada de ver o mundo, “a donzela desamparada que esperavam resgatar surge como uma mãe canibal, saudável e robusta” (1990:89).De acordo com a visão de Lovelock, Gaia não atua com nenhuma benevolência particular em relação a qualquer espécie. Ela cuida de Seus próprios interesses e não dos nossos. Desse modo, se continuarmos a provocá-la, Gaia pode, realmente, se ajustar, e, nesse processo, tornar a vida bem difícil para nós humanos. Segundo ele, ainda que pareça bastante improvável que qualquer coisa que façamos possa ameaçar a sobrevivência de Gaia, "se conseguirmos alterar o ambiente de forma sensível como pode acontecer no caso de uma concentração de dióxido de carbono na atmosfera – então uma nova adaptação pode se processar. E, provavelmente não será em nosso favor" (IDEM: 90).
Além da semelhança óbvia trazida pela visão da Terra como um organismo vivo, e não apenas o lugar onde a vida se dá, as duas cosmovisões se aproximam também na sua concepção da Terra como uma Mãe ambígua, simultaneamente, criadora e destruidora, dona da vida e da morte. Como se percebe na citação abaixo:
Gaia, como eu a vejo não é uma mãe que, excessivamente amorosa, seja tolerante em face da má conduta. (...) Ela é dura e severa, sempre mantendo o mundo aquecido e confortável para aqueles que obedecem às suas regras, mas implacável em sua destruição daqueles que as transgridem (IDEM: Ibidem).
De maneira semelhante, os seguidores da Wicca costumam ressaltar que “se a vida é uma teia, a Deusa é uma aranha, uma predadora, bem como uma mãe” (HARVEY, G. 1997:77).
Entretanto, essa ênfase na figura da Deusa gera, com freqüência, certa incompreensão em relação à Wicca e seus valores. Uma das acusações mais freqüentes é a de que a religião propugna por um “monoteísmo de saias”, um novo desequilíbrio que legitimaria o predomínio de um sexo sobre o outro. De fato, existe na Wicca um discurso sobre a necessidade de insistir no aspecto feminino da divindade. Para seus adeptos, não se trata de uma mera compensação ou da substituição de um domínio por outro, mas sim, de uma maneira de enfatizar outros valores que não aqueles definidos como importantes pela ótica patriarcal, como se explica nesta fala:
Hoje vivemos esse desequilíbrio, fruto de séculos de submissão de homens e de mulheres à estrutura patriarcal. Há autores que defendem a existência de uma estrutura matriarcal anterior ao patriarcado, há autores que preferem não ir tão longe e defendem apenas a existência de sociedades cooperativas nas quais homens e mulheres possuíam igual valor social. O fato é que hoje temos que lidar com o legado patriarcal tanto no sentido objetivo, quanto subjetivo de nossas experiências. E para que possamos fazer uma transição desta fase de desenvolvimento humano para uma outra mais justa e igualitária torna-se fundamental o resgate dos aspectos femininos submersos no útero primordial de nossa psique. (...) Ao encontrar-se com a fluidez de sentimentos presentes no feminino, a rigidez das leis masculinas pode tornar-se sensível às necessidades do Outro. Ao confrontar-se com a potencialidade criadora da Donzela, o impulso auto-centrado do Herói pode dar vida à lutas coletivas. Ao deparar-se com a generosidade da Grande Mãe, o código excludente do Pai-Celestial pode reconhecer a todos como Seus filhos.
Essa percepção não constitui uma exclusividade da Wicca. Muitos intelectuais feministas – tanto mulheres quanto homens – concordam com a idéia de que a concepção da divindade como feminina expressa um conjunto de valores distinto. Para Monika Von Kuss, por exemplo, “a criação do mundo a partir da divindade masculina ou da divindade feminina são concepções distintas que produzem visões de mundo diferentes. A estrutura social matricial não era baseada no exercício do poder sobre, mas sim no viver com”. (VON KUSS, M. 2000:95) É esse aspecto da redescoberta da Deusa como ponto de apóio para a criação de uma sociedade diferente que discutiremos agora.
Reescrevendo a história
Um dos principais pontos de interesse do movimento da espiritualidade da Deusa é a pesquisa e a recuperação da história das mulheres e da sua contribuição para a cultura humana. A história tradicional tem ignorado ou marginalizado as mulheres e apresentado a dominação masculina como a norma desde a origem da humanidade até os dias de hoje. Desse modo, a história se apresenta como uma narrativa patriarcal do modo como as coisas sempre foram e também como uma justificativa para a sua continuação nos mesmos moldes. Feministas costumam se referir à esta narrativa como “his-story” – a história dele – e estão, por sua vez, usando suas habilidades para descobrir, explorar e recordar “her-story”. Para algumas “her-story” constitui uma reconstrução muito mais verdadeira do que a história oficial; para outras uma espécie de mito fundador que propicia uma base filosófica para repensar as relações de poder entre os sexos. E algumas outras são ambivalentes quanto a essa questão: por um lado estão conscientes do rigor e da autoridade das pesquisas neste campo, por outro, não estão totalmente convencidas da existência de uma “idade de Ouro” das mulheres. Pensam, que na verdade, “idades de ouro” são mais bem trabalhadas como referências simbólicas para a criação do futuro do que como descrição literal de tempos passados.
Para os wiccanos, a crítica às instituições patriarcais, seu modus operandi e, principalmente, ao seu caráter excludente, não apenas em relação às mulheres, mas aos “diferentes” de modo geral, está no cerne da proeminência atribuída à Deusa. Seu substrato simbólico se apóia num ideal de matriarcado – seja este encarado como uma realidade histórica anterior ao predomínio masculino, seja como uma alternativa de poder e de organização social. Trata-se de uma questão delicada, pois ainda que existam, como vimos anteriormente, estudos arqueológicos sugerindo um perfil mais pacífico e cooperativo para as culturas do Neolítico permanece a questão de saber se esses indícios autorizam a afirmação da existência histórica de um matriarcado primordial, centrado no culto à Deusa-Mãe. E qual a importância deste fato para a religião e seu processo de desenvolvimento?
Para boa parte dos adeptos da Wicca, a resposta a esta questão tem sido a de que, embora essas pesquisas representem um aporte significativo à sua visão de mundo, e mesmo que as teorias desenvolvidas por estes estudiosos sejam bastante convincentes, elas não se constituem na fonte de legitimação da sua experiência religiosa. Esta lhes é dada a partir da sua conexão atual com a Deusa Mãe e Seu consorte, como afirma neste comentário a sacerdotisa e escritora Starhawk:
Para nós, Deusas, Deuses e, sobre este assunto, até mesmo teorias arqueológicas não são algo para se acreditar cegamente e nem são, tampouco, simples metáforas. Uma imagem da deidade, um símbolo em uma panela, uma caverna pintada, uma liturgia estão mais para portais que conduzem a estados particulares de consciência e determinadas constelações de energia. Medite neles, contemple-os e eles o levarão para algum lugar dentro do ciclo nascimento-morte-regeneração. O coração da minha conexão com a Deusa tem menos a ver com o que eu acredito que aconteceu há cinco mil ou há quinhentos anos atrás e muito mais a ver com o que eu noto quando piso fora da minha porta: aquela parte do carvalho que caiu no chão e faz a terra fértil. É chamando esse processo de sagrado que eu chego a este milagre cotidiano com um senso de temor e maravilhada gratidão e que, em condições muito práticas, eu composto meu próprio lixo.
Uma leitura complementar seria perceber essa afirmação de um “princípio social de organização matriarcal”, não como a expressão de uma realidade histórica, o que não exclui esta possibilidade, mas como a base noológica para a construção de um paradigma alternativo ao modo de organização patriarcal. A questão do poder constitui um ponto importante de reflexão para as mulheres envolvidas com o movimento da espiritualidade da Deusa. É bastante forte a crítica às instituições patriarcais, seu modus operandi e, principalmente seu caráter excludente não apenas em relação às mulheres, mas aos “diferentes” de modo geral. Muitos praticantes modernos, em particular as bruxas feministas criticam a sociedade atual por conta das suas estruturas sociais hierárquicas e autoritárias, baseadas no exercício do “poder sobre” que desautorizam e deslegitimam valores como sensibilidade, criatividade e colaboração. De fato, o chamado “poder sobre” é um dos pilares da visão de mundo patriarcal, caracterizada pela ordenação do mundo em opostos hierárquicos, a um dos quais é sempre outorgada a prerrogativa – e mesmo a obrigação – de dominar o outro. Como recorda Marilena Chauí:
Fomos habituados pelo chamado pensamento ocidental a estabelecer uma clara diferença entre corpo e alma, matéria e espírito, coisa e consciência e a relacioná-los de um modo hierárquico, um dos termos sendo sempre superior ao outro e, nessa qualidade, dotado do direito de mando”. (In VON KUSS, M. 2000:93).
Nesta perspectiva, a idéia de um matriarcado atuaria então como um “conceito fertilizador” que impulsionaria a busca e a expressão de formas não autoritárias e não coercitivas de poder, os chamados “poder de dentro” e “poder com”, como afirma esta bruxa ligada à tradição feminista da Wicca:
Um dos principais pontos de interesse do movimento da espiritualidade da Deusa é a pesquisa e a recuperação da história das mulheres e da sua contribuição para a cultura humana. A história tradicional tem ignorado ou marginalizado as mulheres e apresentado a dominação masculina como a norma desde a origem da humanidade até os dias de hoje. Desse modo, a história se apresenta como uma narrativa patriarcal do modo como as coisas sempre foram e também como uma justificativa para a sua continuação nos mesmos moldes. Feministas costumam se referir à esta narrativa como “his-story” – a história dele – e estão, por sua vez, usando suas habilidades para descobrir, explorar e recordar “her-story”. Para algumas “her-story” constitui uma reconstrução muito mais verdadeira do que a história oficial; para outras uma espécie de mito fundador que propicia uma base filosófica para repensar as relações de poder entre os sexos. E algumas outras são ambivalentes quanto a essa questão: por um lado estão conscientes do rigor e da autoridade das pesquisas neste campo, por outro, não estão totalmente convencidas da existência de uma “idade de Ouro” das mulheres. Pensam, que na verdade, “idades de ouro” são mais bem trabalhadas como referências simbólicas para a criação do futuro do que como descrição literal de tempos passados.
Para os wiccanos, a crítica às instituições patriarcais, seu modus operandi e, principalmente, ao seu caráter excludente, não apenas em relação às mulheres, mas aos “diferentes” de modo geral, está no cerne da proeminência atribuída à Deusa. Seu substrato simbólico se apóia num ideal de matriarcado – seja este encarado como uma realidade histórica anterior ao predomínio masculino, seja como uma alternativa de poder e de organização social. Trata-se de uma questão delicada, pois ainda que existam, como vimos anteriormente, estudos arqueológicos sugerindo um perfil mais pacífico e cooperativo para as culturas do Neolítico permanece a questão de saber se esses indícios autorizam a afirmação da existência histórica de um matriarcado primordial, centrado no culto à Deusa-Mãe. E qual a importância deste fato para a religião e seu processo de desenvolvimento?
Para boa parte dos adeptos da Wicca, a resposta a esta questão tem sido a de que, embora essas pesquisas representem um aporte significativo à sua visão de mundo, e mesmo que as teorias desenvolvidas por estes estudiosos sejam bastante convincentes, elas não se constituem na fonte de legitimação da sua experiência religiosa. Esta lhes é dada a partir da sua conexão atual com a Deusa Mãe e Seu consorte, como afirma neste comentário a sacerdotisa e escritora Starhawk:
Para nós, Deusas, Deuses e, sobre este assunto, até mesmo teorias arqueológicas não são algo para se acreditar cegamente e nem são, tampouco, simples metáforas. Uma imagem da deidade, um símbolo em uma panela, uma caverna pintada, uma liturgia estão mais para portais que conduzem a estados particulares de consciência e determinadas constelações de energia. Medite neles, contemple-os e eles o levarão para algum lugar dentro do ciclo nascimento-morte-regeneração. O coração da minha conexão com a Deusa tem menos a ver com o que eu acredito que aconteceu há cinco mil ou há quinhentos anos atrás e muito mais a ver com o que eu noto quando piso fora da minha porta: aquela parte do carvalho que caiu no chão e faz a terra fértil. É chamando esse processo de sagrado que eu chego a este milagre cotidiano com um senso de temor e maravilhada gratidão e que, em condições muito práticas, eu composto meu próprio lixo.
Uma leitura complementar seria perceber essa afirmação de um “princípio social de organização matriarcal”, não como a expressão de uma realidade histórica, o que não exclui esta possibilidade, mas como a base noológica para a construção de um paradigma alternativo ao modo de organização patriarcal. A questão do poder constitui um ponto importante de reflexão para as mulheres envolvidas com o movimento da espiritualidade da Deusa. É bastante forte a crítica às instituições patriarcais, seu modus operandi e, principalmente seu caráter excludente não apenas em relação às mulheres, mas aos “diferentes” de modo geral. Muitos praticantes modernos, em particular as bruxas feministas criticam a sociedade atual por conta das suas estruturas sociais hierárquicas e autoritárias, baseadas no exercício do “poder sobre” que desautorizam e deslegitimam valores como sensibilidade, criatividade e colaboração. De fato, o chamado “poder sobre” é um dos pilares da visão de mundo patriarcal, caracterizada pela ordenação do mundo em opostos hierárquicos, a um dos quais é sempre outorgada a prerrogativa – e mesmo a obrigação – de dominar o outro. Como recorda Marilena Chauí:
Fomos habituados pelo chamado pensamento ocidental a estabelecer uma clara diferença entre corpo e alma, matéria e espírito, coisa e consciência e a relacioná-los de um modo hierárquico, um dos termos sendo sempre superior ao outro e, nessa qualidade, dotado do direito de mando”. (In VON KUSS, M. 2000:93).
Nesta perspectiva, a idéia de um matriarcado atuaria então como um “conceito fertilizador” que impulsionaria a busca e a expressão de formas não autoritárias e não coercitivas de poder, os chamados “poder de dentro” e “poder com”, como afirma esta bruxa ligada à tradição feminista da Wicca:
As bruxas feministas freqüentemente vêem o conceito de matriarcado como o fortalecimento das mulheres e a valorização dos princípios femininos. Elas perguntam a si mesmas como seria sentir estar no poder e como o poder pode ser usado diferente da forma como é usado no patriarcado. As mulheres que estão dentro de grupos exclusivamente femininos estão começando a descobrir em primeira mão como o sistema feminino trabalha e como pode ser empregado como uma alternativa ao sistema masculino. Elas estão começando a formar comunidades igualitárias que operam muito diferentemente daquilo que Riane Eisler chama de “sistemas androcráticos”. De fato, os postulados feitos por Eisler em seu livro sobre sociedades igualitárias e como elas funcionam são apoiados pelas observações de outras escritoras feministas sobre sistemas (ideais) de mulheres. E as bruxas feministas estão começando a utilizar estes sistemas em seus “covens”.
Talvez seja essa perspectiva da transformação de relações hierárquicas e de dominação em relações de cooperação e complementaridade, o ponto central da cosmovisão wiccana. Com sua valorização das polaridades “em relação” e sua defesa intransigente dos dois aspectos da realidade – a unidade de todas as coisas e a distinção que individualiza cada parte – a religião da Grande Mãe e do Seu Consorte sacraliza o desejo, visto como a grande força conjuntiva que suscita a união e a integração. O desejo é, segundo os wiccanos, "a energia primordial e esta energia é erótica: a atração entre o amador e o amado, do planeta e da estrela, do elétron pelo próton. O amor é o laço que mantém o mundo unido". (STARHAWK. 2001:57) Também o ato sexual é visto como sagrado, pois constitui “uma verdadeira celebração da vida, um ato de adoração” (BETH, R. 2000:34). Não por acaso, um dos pontos altos dos rituais da Wicca é, na maioria das tradições 19, a celebração do hierogamos – tradicionalmente denominado Grande Rito – que consiste, geralmente, na imersão, pelo sacerdote, de um punhal em um cálice de vinho, seguro pela sacerdotisa, representando o mistério sagrado da re-união das polaridades. Embora seja parte constitutiva da celebração dos oito festivais da Roda do Ano – que na Wicca são chamados de sabás 20 – o Grande Rito assume um papel central na celebração de Beltane, o sabá que comemora a união sexual do Deus e da Deusa, a conjunction oppositorum que assegura a renovação da vida na Terra.
Construir um mundo novo
Muitas são as manifestações coletivas e individuais através das quais se exprime o descontentamento das mulheres com as estruturas criadas por uma sociedade baseada na supremacia violenta do macho. Apenas algumas foram exploradas neste trabalho. O importante é destacar que são os ecos deste passado distante, no qual a força e o poder das mulheres eram respeitados que inspiram estas lutas contemporâneas. Através da força reencontrada das Suas filhas, a Grande Deusa novamente se faz presente.
Mais forte ainda deve ser a Sua voz neste momento. Este é um tempo de urgências e de definições de importância capital. Suspensos, como disse Riane Eisler, “à beira da ecocatástrofe, ganhamos coragem para olhar o mundo de outra maneira, para reverter os costumes, para transcender nossas limitações, para nos libertarmos das restrições convencionais sobre o que é conhecimento e verdade” (1998:31). De fato, foram, de um lado, nossa crescente percepção da ecologia e, de outro o iminente colapso ambiental que nos levaram a atentar para a interligação entre todas as formas de vida que é a base da espiritualidade da Deusa e a desejar viver de forma mais integrada à este Todo.
Reconciliar a humanidade com a natureza, interna e externa, passa pelo resgate do princípio feminino e não apenas do papel social da mulher. A tarefa colocada para todos – mulheres e homens que se reconhecem como filhos da Grande Mãe – é a de subverter a direção da evolução cultural que predominou nos últimos anos e reformar a cultura em todos os seus aspectos, não apenas no campo das relações de gênero. É preciso repensar profundamente os valores sobre os quais se erigiu uma cultura violenta, consumista, predatória e mercantilizada que reduziu a natureza a uma matéria inerte e passiva e, cada vez mais, limita as trocas entre os seres humanos àquelas mediadas pelo mercado. Trata-se de uma tentativa consciente de reformar a cultura, apontando para a importância de outros valores – como a solidariedade, o cuidado, a doação, entre outros. E isso tem ocorrido. Se olharmos para muitos dos movimentos sociais contemporâneos – feminista, ecológico, pacifista, simplicidade voluntária, entre outros – perceberemos em todos eles a presença inspiradora de tradições muito antigas, tradições nas quais a Mãe Terra era honrada. Perceberemos também “que a sociedade mais pacífica e justa que estamos tentando construir agora não é um sonho impossível, e sim uma possibilidade realista, enraizada na direção original da nossa evolução cultural” (IDEM). Neste processo, o resgate do arquétipo da Deusa é extremamente relevante, pois nos mostra a possibilidade de outras formas de convivência entre os diferentes que não a violência e o domínio disfarçados em hierarquia e justificadas em nome de uma divindade excludente e exclusivista. Talvez seja por isso que num dos momentos mais críticos de nossa história enquanto espécie, a Deusa se reaproxime nos convidando para novamente criar culturas que celebrem a vida e a sua diversidade.
O impulso propiciado pela sua redescoberta levou as mulheres à linha de frente no debate sobre qual a sociedade que queremos. Neste processo, “a voz feminina passou da ambição modesta de ser ouvida no espaço público a uma outra, bem mais subversiva, a de formular um outro projeto civilizatório” (OLIVEIRA, R. 1993:08). Inspiradas pela presença eterna da Deusa as mulheres estão, não apenas reinvidicando o lugar que de direito lhes cabe como co-criadoras da cultura humana, como também questionando a própria noção de humanidade baseada no controle e na ausência de limites éticos para o que o homem pode fazer. Se, por um lado, a emergência do feminino como lugar a partir de onde pensar e agir sobre o mundo é um sintoma do nosso tempo é, também “e, principalmente, o desejo consciente das mulheres que nele depositam sua contribuição para o futuro” (IDEM).
Gostaria de encerrar com esta declaração das mulheres do movimento Chipko (abraço) hindu no qual na luta contra a destruição das florestas, cada mulher se dedica a uma árvore da alimentando-a e protegendo-a, se necessário com o próprio corpo. Elas se afirmam inspiradas pela Deusa Shakti – a energia criativa do Universo e dizem:
A força de Shakti veio a nós destas florestas e dessas terras: nós as vimos crescer ano após ano em direção ao seu shakti e de lá retiramos nossa força. Vimos nossos fluxos de água se renovaram e bebemos sua água clara e cristalina. Bebemos leite fresco, comemos manteiga de búfalo, comemos comida de nossos próprios campos – tudo isso nos dá não apenas nutrição para o corpo, mas também uma força moral, pois sendo nossos próprios mestres, controlamos e produzimos nossa própria riqueza. (IN SHIVA, V. 1992: 208)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS & NOTAS (REVISTA ÁRTEMIS)
Nota: no final do texto do sitie de origem
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Agradeço muito por esse lindo trabalho!
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