As Origens da visão Deusa: o mito da Deusa Única na Literatura
No mundo pagão antigo, as deusas eram geralmente as patronas das cidades, da justiça, da guerra, do artesanato e também da lareira, da agricultura, do amor e do aprendizado: elas encarnavam aspectos da civilização e das atividades humanas com muito mais freqüência do que aspectos da natureza. Ademais, a esmagadora maioria dos pagãos realmente acreditava que cada deusa possuía sua personalidade própria, pois eram cultuadas de forma individual.
Existe somente um texto, escrito perto do final do período pagão - Metamorphoses de Apuleius - que apresenta a noção de que uma Deusa única seria a encarnação de todas as outras deusas, sendo identificada com a lua e a natureza como um todo.
Curiosamente, foi essa imagem atípica, criada por Apuleius, que se tornou o conceito predominante da deusa para o mundo moderno. Quando, e como, isso aconteceu?
A resposta curta é: há apenas dois séculos. Durante toda a Idade Média e o início do período Moderno, o elemento principal das deidades pagãs era o mesmo da antigüidade - ou seja, as deusas eram vistas como individuais. Uma pesquisa dos temas clássicos presentes na poesia inglesa escrita entre 1300 e 1800 revela que a deusa mais popular era Vênus/Afrodite, patrona do amor, seguida de perto por Diana/Ártemis, que representa a castidade feminina e (com menos freqüência) a caça; a seguir, temos Minerva/Atena, pela sabedoria, e Juno/Hera, símbolo da rainha perfeita.
É certo que na moderna tradição hermética existia um conceito que fundia as idéias de Apuleius (de que uma deusa encarna todas as demais) e a noção neoplatônica de uma alma mundial. Essa fusão dá origem a uma figura feminina identificada com o céu estrelado, postada entre Deus e a terra e agindo como uma fonte de vida e de inspiração - como se pode conferir na obra de Robert Fludd. Esse conceito, contudo, era conhecido apenas por um grupo muito restrito de estudiosos.
O mais importante, aqui, é que saibamos que para os gregos a terra era feminina e o céu masculino - o contrário, digamos, da visão dos egípcios. Uma vez que a ciência ocidental moderna é altamente influenciada pelo pensamento grego, os conceitos dos gregos se mostram arraigados na ciência. Isso foi reforçado pela mentalidade das sociedades patriarcais da Europa medieval, nas quais os intelectuais e cientistas eram quase sempre homens. Como resultado, a partir da alta idade Média os escritores acadêmicos passaram a usar com freqüência uma figura feminina para personificar o mundo, e esta por vezes aflorava também na literatura criativa.
Este foi o padrão que, com espantosa consistência, predominou até por volta de 1800. Foi então que o Movimento Romântico e suas mudanças culturais alteraram dramaticamente o conceito do feminino. Uma das marcas do Romantismo foi a exaltação da natureza e do instinto, qualidades anteriormente temidas ou depreciadas - e sempre associadas ao feminino. Pela primeira vez, dava-se ênfase à beleza da natureza selvagem e da noite.
O impacto desse novo pensamento sobre a literatura inglesa é muito claro. Entre 1800 e 1940, Vênus (ou Afrodite) preserva a liderança nas aparições literárias, com Diana (Ártemis) em segundo. Juno (Hera), contudo, praticamente desaparece, o que também ocorre com Minerva após 1830. Em terceiro lugar, agora aparece Prosérpina (Perséfone), uma deusa das estações do ano e da morte, sendo que em quarto surge Ceres (Deméter), senhora da colheita. A leitura dos textos citados oferece maiores revelações: Vênus agora não é somente a deusa do amor, mas também está ligada aos bosques e ao mar. Diana não representa mais só a castidade ou a caça, mas também a lua, o reino silvestre e os animais selvagens. Ademais, nos casos em que uma deusa é a personagem principal de um poema, Vênus perde sua supremacia para Diana - ou para uma deidade feminina do luar e do mundo natural, agora mais comumente chamada de "Mãe Natureza" ou "Mãe Terra".
Este padrão fica muito claro por volta de 1810, nas obras de Keats e Shelley. Desde suas primeiras obras, Keats se mostra encantado pela lua, e a identificava com uma deusa, "criadora dos doces poetas, prazer deste belo mundo e de todos os que nele vivem". Seu primeiro trabalho extenso, Endymion (1818), tem por tema o amor bem sucedido de um mortal por essa deusa:
O que tens, ó Lua, que és capaz
De emocionar-me com tamanha força? Quando ainda criança
Eu costumava secar minhas lágrimas ao ver teu sorriso.
Tu te assemelhas a uma minha irmã: de mãos dadas caminhávamos
Do anoitecer à alvorada, pelo firmamento.
... e com o passar dos anos, tu ainda te mesclavas
a todos os meus desejos: tu eras os vales profundos,
Tu eras o cume das montanhas - e a pena do sábio
A harpa do poeta - a voz dos amigos - o sol;
Tu eras o rio - eras a glória conquistada;
Eras minha montaria - meu cálice pleno de vinho;
Meu feito mais extraordinário:
Tu eras o encanto das mulheres, ó Lua amada!
O brilho do luar permeia o trabalho dos autores românticos, surgindo nos locais mais inusitados. Tradicionalmente, os druidas eram tidos como adoradores do sol, mas quando Vincenzo Bellini escreveu o mais famoso drama do século XIX sobre os Druidas, sua ópera Norma (1831), no libreto de Felice Romani vemos a heroína de pé num bosque sagrado evocando a lua, na ária mais conhecida:
Casta deusa, que ilumina estas árvores sagradas,
Mostra-nos teu rosto sem véu,
Traz paz à terra como a levaste ao céu.
Outro modo de personificar uma deusa nessa época é apresentado por Shelley. Quando ele escreveu uma ode totalmente original a uma deusa, ele inicia assim:
Deusa sagrada, Mãe Terra,
Tu de cujo ventre imortal
Surgem deuses, homens e animais,
E folhas e botões e flores.
Por volta de 1820, a imagem dominante de uma deusa na literatura inglesa já estava associada à beleza da terra verde e da lua branca entre as estrelas. Essa imagem foi totalmente absorvida pela geração seguinte. Quando o fervoroso cristão Robert Browning escreveu sobre Ártemis em 1842, ele pôs estas palavras na boca da deusa:
Pelo firmamento eu deslizo minha luzidia lua;
Abrigo-me no inferno acima da paz de minha gente pálida.
Sobre a terra, eu protejo, cuidando de minhas criaturas,
Cada loba grávida e cada ágil raposa,
E cada ninhada com penas das aves,
E todos os recantos verdejantes e isolados.
Mais marcante ainda é o caso de Charlotte Brontë, que era filha de um clérigo anglicano. Ela sempre divulgou apaixonadamente o cristianismo, e fez sua heroína Jane Eyre cogitar viajar como missionária. Emocionalmente, contudo, Jane opera numa cosmologia onde um único deus supremo cria a natureza para que seja a mãe divina de todas as formas de vida, em especial das mulheres. É a esta mãe (e não a Jesus) que Jane recorre quando em dificuldades, e é ela que lhe aparece numa visão, surgindo da lua. Aparentemente, Brontë jamais percebeu que essa visão era tudo, menos cristã.
O estágio seguinte do processo seria eliminar o deus criador, fazendo da deusa da natureza a única fonte de tudo o que existe. Este passo coube a Swinbourne em 1867, quando ele dá a essa deusa uma poderosa voz sob o nome da deusa-terra germânica Hertha:
Sou aquela que inicia;
De mim jorram os anos;
De mim, deus e homem,
Sou igual e completa;
Deus muda, e o homem também, e suas formas corpóreas;
Eu sou o espírito...
Primeiro, a vida de minha fonte
Primeiro jorra e nada;
De mim surgem as forças
Que salvam ou amaldiçoam;
De mim, o homem e a mulher, e animais e aves silvestres;
Antes de Deus existir, eu existo.
Na mesma época (1867), James Thomson escrevia um poema entitulado "A Deusa Nua", publicado somente em 1880. A personagem principal é a Natureza, que chega a uma cidade nua e é recebida pelos adultos. Os humanos adultos oferecem-lhe o hábito de uma freira ou as vestes de um filósofo. Somente as crianças percebem o quão bela ela é, e retornam com ela para os bosques. Durante as décadas que separaram a composição da publicação deste poema, George Meredith desenvolvia sua própria visão poética, segundo a qual todas as deusas clássicas eram aspectos diferentes da "Grande Natureza" ou da "Terra", com a qual os humanos deveriam se reconciliar para serem novamente completos. Por volta de 1880, essa figura da deusa única era tanto criadora como redentora.
Prof. Ronald Hutton
IN:http://www.apocalipse.us/forum/index.php?topic=1244.0
No mundo pagão antigo, as deusas eram geralmente as patronas das cidades, da justiça, da guerra, do artesanato e também da lareira, da agricultura, do amor e do aprendizado: elas encarnavam aspectos da civilização e das atividades humanas com muito mais freqüência do que aspectos da natureza. Ademais, a esmagadora maioria dos pagãos realmente acreditava que cada deusa possuía sua personalidade própria, pois eram cultuadas de forma individual.
Existe somente um texto, escrito perto do final do período pagão - Metamorphoses de Apuleius - que apresenta a noção de que uma Deusa única seria a encarnação de todas as outras deusas, sendo identificada com a lua e a natureza como um todo.
Curiosamente, foi essa imagem atípica, criada por Apuleius, que se tornou o conceito predominante da deusa para o mundo moderno. Quando, e como, isso aconteceu?
A resposta curta é: há apenas dois séculos. Durante toda a Idade Média e o início do período Moderno, o elemento principal das deidades pagãs era o mesmo da antigüidade - ou seja, as deusas eram vistas como individuais. Uma pesquisa dos temas clássicos presentes na poesia inglesa escrita entre 1300 e 1800 revela que a deusa mais popular era Vênus/Afrodite, patrona do amor, seguida de perto por Diana/Ártemis, que representa a castidade feminina e (com menos freqüência) a caça; a seguir, temos Minerva/Atena, pela sabedoria, e Juno/Hera, símbolo da rainha perfeita.
É certo que na moderna tradição hermética existia um conceito que fundia as idéias de Apuleius (de que uma deusa encarna todas as demais) e a noção neoplatônica de uma alma mundial. Essa fusão dá origem a uma figura feminina identificada com o céu estrelado, postada entre Deus e a terra e agindo como uma fonte de vida e de inspiração - como se pode conferir na obra de Robert Fludd. Esse conceito, contudo, era conhecido apenas por um grupo muito restrito de estudiosos.
O mais importante, aqui, é que saibamos que para os gregos a terra era feminina e o céu masculino - o contrário, digamos, da visão dos egípcios. Uma vez que a ciência ocidental moderna é altamente influenciada pelo pensamento grego, os conceitos dos gregos se mostram arraigados na ciência. Isso foi reforçado pela mentalidade das sociedades patriarcais da Europa medieval, nas quais os intelectuais e cientistas eram quase sempre homens. Como resultado, a partir da alta idade Média os escritores acadêmicos passaram a usar com freqüência uma figura feminina para personificar o mundo, e esta por vezes aflorava também na literatura criativa.
Este foi o padrão que, com espantosa consistência, predominou até por volta de 1800. Foi então que o Movimento Romântico e suas mudanças culturais alteraram dramaticamente o conceito do feminino. Uma das marcas do Romantismo foi a exaltação da natureza e do instinto, qualidades anteriormente temidas ou depreciadas - e sempre associadas ao feminino. Pela primeira vez, dava-se ênfase à beleza da natureza selvagem e da noite.
O impacto desse novo pensamento sobre a literatura inglesa é muito claro. Entre 1800 e 1940, Vênus (ou Afrodite) preserva a liderança nas aparições literárias, com Diana (Ártemis) em segundo. Juno (Hera), contudo, praticamente desaparece, o que também ocorre com Minerva após 1830. Em terceiro lugar, agora aparece Prosérpina (Perséfone), uma deusa das estações do ano e da morte, sendo que em quarto surge Ceres (Deméter), senhora da colheita. A leitura dos textos citados oferece maiores revelações: Vênus agora não é somente a deusa do amor, mas também está ligada aos bosques e ao mar. Diana não representa mais só a castidade ou a caça, mas também a lua, o reino silvestre e os animais selvagens. Ademais, nos casos em que uma deusa é a personagem principal de um poema, Vênus perde sua supremacia para Diana - ou para uma deidade feminina do luar e do mundo natural, agora mais comumente chamada de "Mãe Natureza" ou "Mãe Terra".
Este padrão fica muito claro por volta de 1810, nas obras de Keats e Shelley. Desde suas primeiras obras, Keats se mostra encantado pela lua, e a identificava com uma deusa, "criadora dos doces poetas, prazer deste belo mundo e de todos os que nele vivem". Seu primeiro trabalho extenso, Endymion (1818), tem por tema o amor bem sucedido de um mortal por essa deusa:
O que tens, ó Lua, que és capaz
De emocionar-me com tamanha força? Quando ainda criança
Eu costumava secar minhas lágrimas ao ver teu sorriso.
Tu te assemelhas a uma minha irmã: de mãos dadas caminhávamos
Do anoitecer à alvorada, pelo firmamento.
... e com o passar dos anos, tu ainda te mesclavas
a todos os meus desejos: tu eras os vales profundos,
Tu eras o cume das montanhas - e a pena do sábio
A harpa do poeta - a voz dos amigos - o sol;
Tu eras o rio - eras a glória conquistada;
Eras minha montaria - meu cálice pleno de vinho;
Meu feito mais extraordinário:
Tu eras o encanto das mulheres, ó Lua amada!
O brilho do luar permeia o trabalho dos autores românticos, surgindo nos locais mais inusitados. Tradicionalmente, os druidas eram tidos como adoradores do sol, mas quando Vincenzo Bellini escreveu o mais famoso drama do século XIX sobre os Druidas, sua ópera Norma (1831), no libreto de Felice Romani vemos a heroína de pé num bosque sagrado evocando a lua, na ária mais conhecida:
Casta deusa, que ilumina estas árvores sagradas,
Mostra-nos teu rosto sem véu,
Traz paz à terra como a levaste ao céu.
Outro modo de personificar uma deusa nessa época é apresentado por Shelley. Quando ele escreveu uma ode totalmente original a uma deusa, ele inicia assim:
Deusa sagrada, Mãe Terra,
Tu de cujo ventre imortal
Surgem deuses, homens e animais,
E folhas e botões e flores.
Por volta de 1820, a imagem dominante de uma deusa na literatura inglesa já estava associada à beleza da terra verde e da lua branca entre as estrelas. Essa imagem foi totalmente absorvida pela geração seguinte. Quando o fervoroso cristão Robert Browning escreveu sobre Ártemis em 1842, ele pôs estas palavras na boca da deusa:
Pelo firmamento eu deslizo minha luzidia lua;
Abrigo-me no inferno acima da paz de minha gente pálida.
Sobre a terra, eu protejo, cuidando de minhas criaturas,
Cada loba grávida e cada ágil raposa,
E cada ninhada com penas das aves,
E todos os recantos verdejantes e isolados.
Mais marcante ainda é o caso de Charlotte Brontë, que era filha de um clérigo anglicano. Ela sempre divulgou apaixonadamente o cristianismo, e fez sua heroína Jane Eyre cogitar viajar como missionária. Emocionalmente, contudo, Jane opera numa cosmologia onde um único deus supremo cria a natureza para que seja a mãe divina de todas as formas de vida, em especial das mulheres. É a esta mãe (e não a Jesus) que Jane recorre quando em dificuldades, e é ela que lhe aparece numa visão, surgindo da lua. Aparentemente, Brontë jamais percebeu que essa visão era tudo, menos cristã.
O estágio seguinte do processo seria eliminar o deus criador, fazendo da deusa da natureza a única fonte de tudo o que existe. Este passo coube a Swinbourne em 1867, quando ele dá a essa deusa uma poderosa voz sob o nome da deusa-terra germânica Hertha:
Sou aquela que inicia;
De mim jorram os anos;
De mim, deus e homem,
Sou igual e completa;
Deus muda, e o homem também, e suas formas corpóreas;
Eu sou o espírito...
Primeiro, a vida de minha fonte
Primeiro jorra e nada;
De mim surgem as forças
Que salvam ou amaldiçoam;
De mim, o homem e a mulher, e animais e aves silvestres;
Antes de Deus existir, eu existo.
Na mesma época (1867), James Thomson escrevia um poema entitulado "A Deusa Nua", publicado somente em 1880. A personagem principal é a Natureza, que chega a uma cidade nua e é recebida pelos adultos. Os humanos adultos oferecem-lhe o hábito de uma freira ou as vestes de um filósofo. Somente as crianças percebem o quão bela ela é, e retornam com ela para os bosques. Durante as décadas que separaram a composição da publicação deste poema, George Meredith desenvolvia sua própria visão poética, segundo a qual todas as deusas clássicas eram aspectos diferentes da "Grande Natureza" ou da "Terra", com a qual os humanos deveriam se reconciliar para serem novamente completos. Por volta de 1880, essa figura da deusa única era tanto criadora como redentora.
Prof. Ronald Hutton
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Que o Poder Infinito da Deusa e da Mãe Natureza purifique seus caminhos.