Éramos todos órfãos
Reflexões de uma sacerdotisa sobre a Deusa, as mulheres e os homens
Existem dores que só as Mulheres sentem. Os homens podem crer que levam o peso do mundo em suas cabeças (e isso pode até ser real), porém as mulheres carregam as dores e lágrimas da humanidade nos seus corpos. Existem dores intensas que só uma mulher pode ter, são dores relacionais. Toda a pessoa humana que já existiu um dia esteve no corpo de uma mulher, e foi em algum momento alimentada por uma mulher. Esse é o tipo de memória atávica que não se apaga. Não importa o seu gênero, na sua primeira lembrança e no mais íntimo de você, está uma mulher. Escute-a e a deixe chorar.
Novembro, 2004.
Donzela, guardiã da pureza dos inícios.
Quando encontrei o caminho da Grande Mãe nessa existência, foi puro êxtase! Foi como descobrir que minha alma podia dançar e meu coração podia desabrochar flores. Fui uma pessoa espiritualizada desde a infância, mas nunca nada havia tocado tão profundamente meu coração, feito tanto sentido e me tornado tão feliz! O mundo pulsava em uma avalanche de sincronicidades, sonhos, amor, irmandade, visões, cura e resgate. Quero dizer que não há nada como esse encantamento, é um pouco como a paixão. Porém, eu sabia que era amor, antigo e profundo, e chegava para ficar.
Comecei a participar do círculo de mulheres da Mirella Faur (1) aos 21 anos. Nessa época, estudava Psicologia e estava perto de terminar o curso. Já conhecia o caminho da Grande Mãe, já havia sentido seu suporte e amor. Porém, o círculo foi meu primeiro contato com a irmandade e o verdadeiro deslanchar nessa dança espiral das tradições antigas. Meu coração estava preenchido e minha intuição totalmente receptiva. Faltava saciar meu conhecimento intelectual para poder pisar com segurança nesse novo terreno. Por isso decidi, na época, fazer minha monografia de conclusão de curso com o tema de religião e gênero. Era minha chance de investigar a fundo isso que minhas novas irmãs chamavam de Deusa. No fundo, eu estava cheia de medos e preconceitos, tantos que é melhor nem enveredar nessa estrada.
Anciã, guardiã dos mistérios do passado.
Estudei e estudei, li, cavei. À medida que escrevia com paixão, me tornava rouca, cada vez mais rouca, como se gritasse para multidões. Resgatava a voz daquelas mulheres que foram minhas mães e avós, aquelas mulheres que fui para além da minha identidade. Resgatava a voz daquelas mulheres que não puderam se expressar por séculos, que morreram em meio à dor, violência e solidão. Eu cavava e sentia que as informações floresciam no meu coração tendo brotado do próprio fundo escuro da Terra... O ventre-terra, que guarda os ossos das minhas velhas mães, das minhas outras irmãs, os ossos que são meus, são meus também. Ai, minhas antigas mães, ai, meus eus antigos, quanto há para ser reparado! Desejava pedir desculpas e colocá-las no colo, colocar a nós todas por tanta injustiça e traição patriarcal. O que havia acontecido com todos nós?
Resolvi cavar mais fundo, penetrando na densidade desse cemitério de ossos da Mãe Terra. Até que algo diferente aconteceu. Ouvi em minhas memórias, meu corpo, minhas palavras a canção mais antiga que havia experimentado até então. A Terra Mãe me encantava com canções de beleza e paz infinitas. Descobri que nessa mesma Terra - hoje devastada pelos valores de guerra, competição, apropriação e negação do outro -, houve povos de cultura simples que viviam em sociedades solidárias e em harmonia com todas as suas relações. Utopia? Acho que não.
Rianne Eisler, em seu livro “O Cálice e a Espada”, descreve essas sociedades em cujas casas e túmulos eram construídos com o mesmo tamanho como conhecedoras do poder do Cálice, o poder da doação. Em seu livro, ela também desconstrói o mito do homem-das-cavernas caçador e demonstra que as primeiras armas eram provenientes dos povos da estepe e foram forjadas bem mais tarde do que o alegado pelos antigos arqueólogos. Maturana (2) chama essas sociedades de matrísticas, por serem povos de mística feminina.
Muitos de nós já conhecemos a história das imagens de mulheres grávidas, de seios fartos e ligadas a imagens lunares que foram pintadas no período paleolítico e encontradas, principalmente, em cavernas da Anatólia (Turquia). A arqueologia antiga e patriarcal acreditava que essas imagens representavam as fantasias eróticas de homens dos povos antigos. Ou, como um conhecido pontuou de maneira mal educada: “elas eram a prova de que os xamãs eram punheteiros”. Porém, hoje nós sabemos melhor, reinterpretamos a história com mais fatos e observação cautelosa. Abrimos mão da visão de túnel limitada do preconceito. Uma das possibilidades, aquela que fala mais alto no meu coração – afinal toda a interpretação da história é também uma escolha – é de que essas imagens simbolizavam a mística de culto à vida, à Terra, à Lua e, associada a todas essas, à mulher. O que mais me intrigou na época, não foi descobrir o quão antigas eram as representações desse Divino Feminino. O que mais me intrigou foi perceber todas as implicações do emocionar cultural desses povos. Não havia matriarcado, pois as mulheres não estavam no comando. Havia algo além.
Eu já ouvira toda aquela história de que o “homem é o lobo do homem”, o ser humano é naturalmente cruel e perverso, a guerra e a competição são inevitáveis condições da natureza humana. Porém, com o novo conhecimento, todas essas idéias morreram junto com minhas últimas crenças patriarcais. Nós vivemos cronologicamente mais tempo de solidariedade praticamente global do que de guerra. Pensem. Isso é bombástico! Talvez você já tenha essa informação e não se surpreenda tanto. Porém, renove sua fé, reveja essa descoberta pela primeira vez. Encante-se novamente. Esse conhecimento é fantástico! Fico feliz até hoje pensando nisso.
O que aconteceu para mudar esse quadro é que é a peça obscura do quebra-cabeça. Existem algumas teorias, e é claro que tenho as minhas preferidas. Porém, não quero me prender a isso agora, a informação que já temos é suficiente para o que tenho a dizer nesse artigo.
Mãe, guardiã dos frutos do presente.
Com todas essas reflexões, o foco da minha angústia saiu das mulheres e voltou-se para toda a humanidade. Quem são os algozes, afinal? Somos todos filhos da mesma Mãe e todos fomos privados do seu conforto. Sua presença foi riscada da história, sua memória foi punida severamente quando carregadas por suas filhas secretas.
Mulheres espancadas, vendidas, exploradas, estupradas, violadas das formas mais monstruosas. Na China, no Brasil, no Islã, na Índia, na Europa, nos Estados Unidos, em todo o planeta. É tanto terror, mágoa e desamor que não posso evitar mudar o foco da pergunta. Ao invés de me perguntar como isso foi acontecer, começo a pensar: por que isso continua acontecendo?
O maior estrago do patriarcado foi a Separação. Homens contra mulheres e contra homens. Nosso Povo contra o Outro Povo. Eu que não sou você, e sou melhor que você, e portanto destinado a te destruir. Jamie Sams, em um de seus livros, já dizia que todas as mulheres são reflexos da Mãe Terra, e que maltratar uma mulher tem o poder de criar a escassez para todos os filhos da Terra. É isso, meus queridos. Aconteceu. Vivemos e sofremos a escassez. As mulheres sofrem vitimizadas pelos homens, e os homens vitimizados uns pelos outros. Pensem nisso, sintam isso. Saímos todos de Eras idílicas de conforto e solidariedade, do poder do cálice, da beleza e da irmandade. Todos nos dirigimos juntos para a Era em que a força bruta é mais poderosa que a emoção. Os homens endurecem, os homens vão para guerra, os homens matam outros homens, e matam mulheres e crianças. Os homens não podem amar. Eles não podem amar sua mãe ou sua mulher, pois eles não têm Mãe.
Ao longo dos últimos séculos, ficamos todos alheios aos mistérios e a beleza da feminilidade, da Lua e da Terra. Hoje, as mulheres resgatam esses mistérios e reconquistam com isso sua soberania e integridade. Porém, saibam, queridas, que a soberania é só o princípio do caminho que leva à Deusa. Nossa Mãe nos ensina o amor sem limites. Temos seios que produzem leite para mostrar que as mulheres são as guardiãs do amor infinito, pois nutrem toda a vida nova com o alimento do coração. À medida que resgatamos nossa integridade do nosso espaço sagrado, podemos penetrar nessas lições de amor. Somos a bandeira do novo mundo, somos as mães, somos a paz. Não vamos perpetuar a tradição do Nosso Povo e do Outro Povo. Vamos dançar juntos e oferecer aos filhos da Terra aquilo que todos nós perdemos: o direito à nossa maternidade espiritual. Quando os homens desconhecem os mistérios, eles o temem e o violentam. No entanto, se os deixamos participar da parte da qual eles também têm direito, nós substituímos o medo pela empatia, e a violência pelo saudoso abraço de reconhecimento. Somos todos órfãos da mesma Mãe, somos todos órfãos da Mãe que nós mesmos esquecemos. Ela ainda está aqui, Ela ainda nos espera. Despertemos em seu abraço de amor para criar uma nova Era.
Entrego essas palavras em Serviço e Gratidão para Ela.
Eu, Natália, falei. Ahá!
(1) Mirella não está mais em Brasília, mas em Águas da Prata com seu esposo igualmente estudioso das tradições espirituais, Cláudio Capparelli. O círculo de mulheres criado por ela hoje se chama Teia de Thea, continua os trabalhos na Unipaz, sob sua guiança e olhar amoroso.
(2) MATURANA, Humberto R. - Amar e Brincar: fundamentos esquecidos do humano. Ed. Palas Athena. 2004.
Natália Carvalho
Psicóloga, facilitadora de grupos para o resgate do Feminino, contadora de histórias do Feminino Ancestral.
Teia de Thea/UNIPAZ-DF:
http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=7825720
nataliacarvalho@gmail.com
BRASÍLIA/DF
IN: http://www.absoluta-online.com.br/conteudo_yinsights_reflexoes_natalia.html
BELÍSSIMO post!!!
ResponderExcluirbjus amiga
Querida amiga blogueira.
ResponderExcluirComo sempre seus posts sensacionais.
Quando leio num blog masculino que as mulheres só fazem sucesso porque algum homem,antes dela, ajudou,por exemplo,por mais que uma Engenheira seja competente, ela é incapaz de erguer um prédio, sem ajuda dos homens. Disse tambem que uma digitadora que seja otima digitadora não tem nenhum mérito,pois foi sempre um homem que inventou e constrói computadores
Enfim,quando um homem ou mulher machista escreve estas coisas nos seus blogs, o que devemos responder?
Hamanndah
Tudo o que devemos fazer é o nosso melhor.
ResponderExcluirEu responderia que durante séculos as mulheres foram proibidas de desenvolver suas habilidades e capacidas naturais mas que por detrás das muitas invenções ditas criadas por homens houveram a mão de várias mulheres por trás. Os homens não podem nunca esquecer que estão vivos porque quanda sua mãe lhe olhou nos olhos viu que era bom e decidiu livremente alimenta lo. Por mais vigilante que pudessem ser os homens é uma mulher que determina como alimentará uma criança e isso também determina sua vida. Ademais várias mulheres brilhantes desenvolveram áreas da computação, engenharia e outras indo além daqueilo que foi ensinada pelos homens.
Foi muito bom ler este texto.Parece ate que me sinto mais forte.
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