Evidências arqueológicas e históricas revelam e comprovam que a mulher foi o centro de vida humana e espiritual durante milênios. Em todas as culturas antigas do mundo inteiro encontram-se representações da Deusa como a Criadora Divina. A mulher – como Sua representante na Terra – era reverenciada pela sua habilidade de gerar do seu sangue menstrual uma nova vida, criando o alimento do recém-nascido do seu próprio corpo, bem como pela sua criatividade, que resultou de inúmeras invenções e descobertas. A sintonia do ciclo com as fases da lua simbolizava a sua estreita conexão com a Deusa lunar, enquanto a sua facilidade em perceber os sinais cósmicos, em se comunicar com as forças da natureza ou com os espíritos ancestrais lhe conferia papel essencial nos cultos e nas práticas espirituais.
A representação do Criador por uma figura masculina é um fenômeno recente na história da humanidade, pois durante pelo menos 35.000 anos Deus foi representado como sendo mulher. Para compreendermos melhor esta ousada afirmação (o que para muitos parece uma blasfêmia ou heresia), precisamos voltar no tempo e no espaço, aos primórdios da humanidade, antes do Verbo, quanto existia somente a Mãe.
(...) Após os períodos paleolítico, que durou mais de 30.000 anos, e neolítico, cuja duração foi em torno de 10.000 anos, ocorreu a grande mudança que substituiu as sociedades de parceria por sistemas sociais de dominação, violência e autoritarismo hierárquico e patriarcal.
(...) As civilizações e as culturas milenares da Deusa foram mutiladas, seus templos e estatuetas destruídos e os mitos e lendas modificados e deturpados. Tornou-se necessário estabelecer uma nova hierarquia divina para justificar a inferiorizarão e subordinação das mulheres. A Deusa foi relegada cada vez mais à condição de esposa, amante, mãe ou filha dos novos deuses masculinos, senhores da guerra, dos raios e dos relâmpagos. Não só a Deusa não era mais a Mãe Suprema, como também foi transformada em padroeira da guerra. A Grande Mãe foi dicotomizada na Mãe Boa que dava a vida e a alegria e na Mãe Terrível que trazia destruição e morte, diversificada em várias deusas guerreiras. Estas deusas não defendiam as mulheres, nem as inspiravam para afirmarem sua independência. Elas apoiavam e fortaleciam os guerreiros, sendo poe eles invocadas antes dos combates. Athena, Durga, Morrigan, as Amazonas e outras deusas guerreiras da Europa, Ásia, África, América são criações mitológicas recentes, distorcendo suas antigas funções. As deusas guerreiras não representam aspectos imanentes da Grande Mãe, mas arquétipos da violência dos deuses masculinos e do modelo recente do guerreiro.
Até mesmo a sabedoria representada pela face Anciã da Grande Mãe passou a ser atributo do Deus Pai, como foi descrito na versão patriarcal do nascimento de Athena, não mais do ventre da sua mãe Metis, a deusa pré-helenica da sabedoria, mas da cabeça do seu pai Zeus, Senhor absoluto do Olímpo grego. Em outros mitos, a deusa passou a ser assassinada pelo seu filho que assume o seu poder ou humilhada pelo estrupo, aceitando a submissão.
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(...) Por volta do ano 200 a.C. todas as imagens ligadas ao Divino Feminino tinham desaparecido, a grande biblioteca de Alexandria foi queimada pelos cristãos, e filósofas como Hipácia, torturadas pelos monges cristãos, que alegavam que as fêmeas não podiam ensinar aos homens, por contrariarem as leis de Deus. Tudo o que levasse o rótulo de feminino era considerado inferior, perigoso e precisando ser dominado, controlado ou eliminado. Negava-se até mesmo a existência da alma na mulher, considerada a origem de todos os males, causadora da expulsão do Paraíso e do sofrimento da humanidade...
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O retorno da Deusa
A mudança da condição da mulher pela sua emancipação intelectual, social e política permitiu o reconhecimento e a aceitação e reintegração dos valores ditos femininos em todas as áreas da vida humana. Este processo está favorecendo a manifestação do Sagrado Feminino, como uma fonte de renovação para os indivíduos e a sociedade.
A redenção do feminino diz respeito tanto à mulher quanto ao homem. A excessiva ênfase no masculino manifestada por meio do pensamente racional, analítico e científico levou a humanidade a atitudes antiecológicas. Uma nova consciência ecológica surgirá tão somente quando acrescentarmos uma compreensão intuitiva e uma conexão espiritual com a Natureza. Lembrando o antigo mito e a moderna teoria de Gaia, poderemos realmente sentir, ver e reverenciar Terra como um organismo vivo, unindo os elementos, as forças da Natureza, os seres de todos os reinos e os homens rumo ao Divino.
Para que os valores femininos possam ser plenamente vividos são necessárias profundas mudanças em todas as áreas (social, políticas, educativa, familiar, cultural, econômica e espiritual). Pelo fato de as mulheres terem sido “alimentadas” apenas por imagens masculinas do Divino ao longo dos últimos 3.000 anos, é imprescindível o reconhecimento, a aceitação, a divulgação e a integração do Sagrado Feminino, buscando nos antigos mitos, lendas e tradições da Deusa as manifestações e o respaldo do eterno princípio divino feminino.
Encontrando sua Deusa Interior, as mulheres encontram a si mesmas, reconhecendo e aprendendo como usar seu poder sagrado e a sua sabedoria ancestral. O arquétipo da Grande Mãe nas suas múltiplas manifestações está no nosso inconsciente – individual e coletivo. Ao encontrá-lo, começaremos a lembrar nosso próprio inicio, o contato inicial e a presença amorosa e protetora da nossa mãe carnal, acessando assim a Mãe Divina. Por intermédio de sonhos, rituais, meditações e visualizações poderemos explorar nossos registros inconscientes, expandindo nossa consciência e vivendo melhor o nosso mito pessoal.
O reconhecimento do sagrado Feminino não é apenas um problema particular ou uma busca individual de algumas mulheres, ma sim de toda a humanidade. Trata-se da integração de todo o ser humano aos valores inerentes à natureza humana, unindo os princípios masculino e feminino, emoção e razão, Eros e Logos, amor e poder, para vencer a grande ilusão da separação e o dogma ultrapassado da dualidade.
Para que haja realmente uma nova era planetária, com uma nova mentalidade e consciência, é preciso usar a força feminina do amor para abrir mentes e corações. O amor à vida, ao próprio Eu, aos outros, aos animais e plantas, a todas as formas de vida, à Terra, à Grande Mãe.
Emerge da sabedoria e compaixão do Sagrado Feminino essa visão do amor todo abrangente e poderoso, que reformula os antigos sistemas de crenças, conceitos, ideologias, comportamentos, em busca de um novo mundo, sem hierarquia, competição ou dualidade, mas em amorosa e verdadeira parceria, realizando assim o casamento sagrado do Céu e da Terra, da Deusa e do Deus, da mulher e do homem.
· Mirella Faur (O Legado da Deusa, p.19,25,26,27,30,32,33)
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