"E aqueles que pensam em Me procurar, saibam que a vossa busca e vosso anseio devem beneficiar-vos apenas se vós souberdes o Mistério; se o que vós procurardes, vós não achardes dentro de vós mesmos, então nunca encontrarão fora. Pois eu tenho estado convosco desde o Início e Eu Sou Aquela que é alcançada ao final do desejo"


sábado, 19 de dezembro de 2009

CRETA, NOS TEMPOS DA MÃE...



A história da civilização de Creta começa por volta de 6000 a.C, quando uma pequena colônia de imigrantes, provavelmente de Anatólia, chegou pela primeira vez ao litoral da ilha. Foram eles que trouxeram a Deusa, bem como uma tecnologia agrária que classifica estes primeiros colonizadores como neolíticos. Nos quatro mil anos seguintes houve progresso tecnológico lento e estável, na cerâmica, tecelagem, metalurgia, gravação, arquitetura e outras artes, bem como um comércio florescente e uma gradual evolução do estilo artístico vivo e alegre
tão característico de Creta. Em seguida, aproximadamente 2000 a.C, Creta entrou no que os arqueólogos denominam o período minóico médio ou palaciano antigo.



Este período já estava bem dentro da Idade do Bronze, período este em que o restante do mundo então civilizado da Deusa estava sendo gradativamente substituído pelos deuses guerreiros masculinos. Ela ainda era venerada – como Hathor e Isis no Egito, Astarte ou Ishtar na Babilónia, ou a Deusa do Sol de Arina em Anatólia. Mas agora não passava de uma deidade secundária, descrita como a consorte ou mãe dos deuses masculinos mais poderosos, pois aquele era um mundo onde cada vez mais o poder das mulheres se achava também em declínio, um mundo onde a dominação masculina e as guerras de conquista e contraconquista passavam a ser a norma em
toda a parte. Na ilha de Creta, onde a Deusa ainda era suprema, não havia sinais de guerra. Ali a economia prosperava e as artes floresciam. E mesmo quando, no século XV a.C, por fim a ilha
caiu sob domínio aqueu — quando os arqueólogos não mais falaram de uma cultura minóica mas sim minóica-micênica —, a Deusa e o modo de pensar e viver por ela simbolizados ainda pareciam prevalecer.

Sob a influência minóica mais antiga — também encontrada no continente grego, o qual da mesma forma começava a entrar no período micênico — os novos senhores indo-europeus da ilha aparentemente adotaram muito da cultura e religião minóicas. Por exemplo, nas imagens do famoso sarcófago Hagia Triada do século XV a.C, já bem mais rígido e estilizado, mas ainda indiscutivelmente cretense, ainda é a Deusa quem comanda a carruagem em forma de grifo,
levando o homem morto para sua nova vida. E ainda são as sacerdotisas da Deusa, e não os sacerdotes em longos robes femininos, que representam papel central nos rituais retratados em afrescos sobre calcário. São elas que lideram a procissão e estendem as mãos para tocar o altar.
Como observou a historiadora da cultura Jacquetta Hawkes, na singular linguagem tão típica dos estudiosos: "Se isto ainda era verdade no século XIV, sua prevalência em tempos anteriores devia ser quase igualmente certa."6 Assim, no grande palácio de Cnossos era uma mulher — a Deusa, suas altas sacerdotisas ou talvez, como acredita Hawkes, a rainha cretense — quem estava no centro, enquanto duas procissões de homens se aproximavam para prestar-lhe
tributo
. E por toda a parte encontram-se figuras femininas, muitas delas com os braços erguidos em gesto de bênção, algumas com serpentes ou machados de duas lâminas nas mãos, como símbolos da Deusa.



O amor à vida e à natureza



Estes gestos de bênção reverente parecem captar de muitas maneiras a essência da cultura minóica. Pois, como coloca Platon, essa era uma sociedade em que "a totalidade da vida era impregnada por ardorosa fé na Deusa Natureza, fonte de toda criação e harmonia". Em Creta, pela última vez na história registrada, um espírito de harmonia entre mulheres e homens, como participantes iguais e alegres na vida, parece difundido. Este espírito parece brilhar na tradição artística cretense, tradição esta que, outra vez nas palavras de Platon, é excepcional em seu "prazer com a beleza, a graça e o movimento" e em seu "deleite com a vida e a proximidade da natureza".





Alguns estudiosos descreveram a vida minóica como uma "expressão perfeita da idéia de homo ludens" — do "homem" expressando nossos mais elevados impulsos através de rituais e atividades artísticas divertidas e ao mesmo tempo significativamente míticas. Outros tentaram resumir a cultura cretense com palavras e expressões como "sensibilidade", "encanto da vida" e
"amor à beleza e à natureza". Embora existam poucos (por exemplo, Ciro Gordon)que tentem desmerecer ou de certa forma redefinir o fenômeno cretense de maneira a fazê-lo ajustar-se aos preconceitos tão comumente aceitos da Antiguidade como mais belicoso e (exceto pelos hebreus) menos desenvolvido espiritualmente do que nós, a grande maioria dos estudiosos, e com certeza aqueles que realizaram extensos trabalhos de campo na ilha, aparentemente mostram-se bastante incapazes de conter sua admiração, e mesmo assombro, ao descrever seus achados.
Encontramos ali uma civilização tecnologicamente rica e culturalmente adiantada na qual, como escrevem os arqueólogos Hans-Günther Buchholtz e Vassos Karageorghis, "todos os meios de comunicação artísticos — na verdade, tanto a vida quanto a morte em sua totalidade — se embutiam profundamente em uma religião penetrante e onipotente". Mas, em contraste marcante
com outras civilizações elevadas do período, esta religião – centrada no culto à Deusa – parece ao mesmo tempo refletir e reforçar uma ordem social na qual, para citar Nicolas Platon, "o medo da morte era praticamente obliterado pela onipresente alegria de viver".
Estudiosos sérios como Sir Leonard Woolley descreveram a arte minóica como "a mais inspirada do mundo antigo". Arqueólogos e historiadores de arte de todo o mundo têm usado expressões como "o encantamento de um mundo mágico" e "a mais completa aceitação do dom de viver jamais vista". E não foi unicamente a arte cretense – os magníficos afrescos de perdizes multicoloridas, grifos fantásticos e mulheres elegantes, delicadas miniaturas de ouro, as jóias
refinadas e as estatuetas graciosamente moldadas – como também a sociedade cretense a impressionar os estudiosos por sua singularidade.
Por exemplo, um traço notável da sociedade cretense, o que a distingue radicalmente de outras antigas civilizações desenvolvidas, é a aparente divisão justa da riqueza. "O padrão de vida — até mesmo de camponeses – parece ter sido elevado", relata Platon, "nenhuma das casas
encontradas até o momento sugeria condições de vida muito inferiores".
Isso não significa que Creta fosse mais rica, ou mesmo tão rica quanto o Egito ou a Babilônia.






Mas, em vista do abismo econômico e social existente entre aqueles situados no topo e na base, característico de outras civilizações "superiores", é importante observar que desde o começo o modo como Creta usava e distribuía sua riqueza parecia ser nitidamente diferente.
Desde os primeiros povoados, a economia da ilha era basicamente agrária. Com o passar do tempo, a criação de gado, a indústria e particularmente o comércio — através de uma grande esquadra mercantil que navegava, e aparentemente comandava, todo o Mediterrâneo — assumiram crescente importância, com grande contribuição para a prosperidade econômica do
país. E, embora a base da organização social no princípio fosse o genos ou clã matrilinear, por volta de 2000 a. C. a sociedade cretense tomou-se mais centralizada. Durante o que Sir Arthur Evans denominou períodos minóico médio e recente, e Platon chama de períodos palacianos antigo e novo, há indícios de administração governamental centralizada em diversos palácios cretenses,
Mas ali a centralização não acarretou a norma autocrática. Tampouco trouxe o uso de tecnologia avançada para benefício só de poucos poderosos ou o tipo de exploração e brutalização das massas tão notável em outras civilizações daquele período.






Pois, embora em Creta houvesse
uma afluente classe dominante, não há indicação (senão em mitos gregos posteriores tais como o de Teseu, rei Minos e o Minotauro) de que ela fosse sustentada por forte poder armado.
"O desenvolvimento da escrita levou ao estabelecimento da primeira burocracia, como demonstrado por um pequeno número de tábuas em linear A", escreve Platon, que em seguida observa como as rendas governamentais extraídas da riqueza cada vez maior da ilha eram empregadas judiciosamente para melhorar as condições de vida, as quais, pelos padrões ocidentais, eram bem "modernas". "Todos os centros urbanos possuíam sistemas de esgotos perfeitos, instalações sanitárias e utensílios domésticos". Acrescenta ele: "Não há dúvida de que extensas obras públicas – pagas pelos cofres públicos – foram realizadas na Creta minóica. Embora até o momento muito poucos vestígios tenham sido encontrados, eles são reveladores: viadutos, estradas pavimentadas, postes de observação, abrigos de estrada, canos de água, fontes, reservatórios, etc.
Há indícios de trabalhos de irrigação em grande escala com canais para levar e distribuir a água."
Apesar dos terremotos periódicos, os quais destruíram por completo antigos palácios e por duas vezes interromperam o desenvolvimento de novos centros de palácios, a arquitetura palaciana de Creta é também única na civilização. Estes palácios são um notável misto de traços enaltecedores da vida e agradáveis aos olhos, em vez de monumentos à autoridade e ao poder,
característicos do Egito e de outras sociedades primitivas, belicosas e de dominação masculina.



Nos palácios cretenses havia vastos átrios, fachadas majestosas e centenas de aposentos dispostos nos "labirintos" organizados que se tomaram o sinônimo de Creta nas lendas gregas posteriores. Nesses labirintos havia inúmeros apartamentos dispostos em vários andares, em diferentes alturas, arrumados de forma assimétrica em volta de um átrio central. Havia aposentos especiais para o culto religioso. Os cortesãos possuíam seus próprios aposentos no palácio ou
ocupavam casas encantadoras nas redondezas. Havia também alojamentos para a criadagem do palácio. Longas filas de quartos para despensa com corredores de acesso eram utilizadas para
estocar mantimentos e tesouros. E extensos salões com filas de elegantes colunas eram usados para
audiências, recepções, banquetes e reuniões da assembléia.
Os jardins eram uma característica essencial em toda a arquitetura minóica, assim como o planejamento das construções que enfatizavam a privacidade, boa luz natural e utensílios domésticos e, talvez, acima de tudo, a atenção ao detalhe e à beleza. "Eram usados materiais locais e importados", escreve Platon, "todos trabalhados com meticuloso cuidado, pilastras de gesso e tufo, fachadas, paredes, prismas de iluminação e átrios perfeitamente compostos. Tabiques eram decorados com estuque, com murais em muitos casos, e com acabamento em mármore.

(...) Não só as paredes, mas com freqüência os tetos e assoalhos eram decorados com pinturas, mesmo em vilas, casas de campo e habitações simples da cidade.(...) os motivos inspiravam-se sobretudo em plantas terrestres e marinhas, em cerimônias religiosas e na vida alegre da corte e do povo. O culto à natureza tudo permeava."

Uma civilização excepcional

O grande palácio de Cnossos, famoso por sua grandiosa escadaria de pedra, suas varandas com colunas e seu esplêndido salão de recepção, é também típico da cultura minóica por sua ênfase estética, em vez de monumental, em sua sala do trono e aposentos reais, expressando talvez o que a historiadora da cultura Jacquetta Hawkes denomina o "espírito feminino" da arquitetura cretense.
Cnossos, provavelmente com cem mil habitantes, ligava-se aos portos da costa sul por uma bela estrada pavimentada, a primeira do gênero na Europa. Suas ruas, à semelhança daquelas de outros centros palacianos tais como Mallia e Phaistos, eram pavimentadas e possuíam escoadouros, e eram ladeadas por casas simples de dois ou três andares, com telhados retos, por vezes com terraço para uso nas noites quentes de verão. Hawkes descreve as cidades em tomo dos palácios como "bem projetadas para a vida civilizada", e Platon caracteriza a "vida particular" do período como tendo "obtido um alto grau e refinamento e conforto". Conforme resume Platon: "As casas eram adaptadas a todas as necessidades práticas da vida, e um ambiente atraente era criado ao redor delas. Os minóicos eram muito ligados à natureza, e sua arquitetura tinha como objetivo permitir-lhes usufruir a natureza o mais livremente possível."
O vestuário cretense também era tipicamente desenhado para obtenção de efeitos estéticos e práticos, permitindo liberdade de movimentos. O exercício físico e os esportes envolviam tanto homens quanto mulheres e eram praticados como divertimento. Quanto à alimentação, uma grande variedade de grãos era cultivada, os quais, juntamente com a criação de gado, piscicultura, apicultura e preparação de vinho, proporcionavam uma dieta saudável e variada. O divertimento e a religião entrelaçavam-se com freqüência, tornando as atividades de lazer cretenses ao mesmo tempo agradáveis e significativas. "A música, o canto e a dança eram acrescentados aos prazeres da vida", descreve Platon. "Havia freqüentes cerimônias públicas, na maioria religiosas, seguidas de procissões, banquetes e demonstrações de acrobacia realizadas em teatros construídos para este fim ou em arenas de madeira", entre as quais os famosos taurokatharpsia ou jogos com touro. Outro estudioso, Reynold Higgins, resume este aspecto da vida cretense da seguinte maneira: "A religião para os cretenses constituía uma ocupação feliz, sendo celebrada em santuários de palácios ou então em santuários ao ar livre nos topos das montanhas e em cavernas sagradas. (...) Sua religião ligava-se intimamente à recreação. No primeiro lugar em importância vinham os esportes com touros, os quais provavelmente eram realizados nas quadras centrais dos palácios. Homens e mulheres jovens reunidos em times agarravam os chifres de um touro em posição de ataque e davam um salto mortal sobre suas costas."
A parceria igualitária de homens e mulheres, que parecia caracterizar a sociedade minóica, talvez nunca seja ilustrada com tanta nitidez como nestes jogos sagrados com o touro, onde mulheres e homens jovens se apresentavam juntos e confiavam sua vida um ao outro. Estes rituais, que combinavam emoção, perícia e fervor religioso, também parecem ter sido característicos do espírito minóico em outro aspecto importante; destinavam-se não só ao prazer individual ou à salvação, mas também a invocar o poder divino capaz de trazer bem-estar a toda a sociedade.

Mais uma vez, é importante salientar que Creta não era uma sociedade ideal ou utópica, mas uma sociedade humana real, cheia de problemas e imperfeições. Era uma sociedade que se desenvolvia há milhares de anos, quando ainda nada havia semelhante à ciência que conhecemos, quando os processos da natureza ainda eram em geral explicados — e tratados — por meio de crenças animistas e ritos expiatórios. Além do mais, era uma sociedade que funcionava em meio a um universo cada vez mais belicoso e dominado pelo homem.
Sabemos, por exemplo, que os cretenses possuíam armas – algumas, como adagas
lindamente adornadas, de grande qualidade técnica. Provavelmente, com o aumento da belicosidade e pirataria no Mediterrâneo eles também vieram a travar batalhas marítimas, a fim de preservar seu vasto comércio marítimo e o litoral. Mas, em contraste com outras civilizações desenvolvidas de seu tempo, a arte cretense não idealiza a guerra. Como já mencionei, até mesmo
o famoso machado de duas lâminas simbolizava a fertilidade abundante da terra. Talhado na forma das enxadas usadas na limpeza da terra para a plantação de sementes ele era também a estilização da borboleta, um dos símbolos da Deusa da transformação e do renascimento
. Tampouco há indicações de que os recursos materiais cretenses fossem – como o são em nosso mundo moderno, a cada dia de forma mais esmagadora – pesadamente investidos em tecnologias de destruição. Ao contrário, a evidência mostra que a riqueza cretense era investida em primeiro lugar na vida harmoniosa e estética.
Como escreveu Platon: "Toda a vida impregnava-se de fé ardente na Deusa Natureza, fonte de toda criação e harmonia. Isso levou ao amor pela paz, ao horror pela tirania e ao respeito pela lei. Mesmo entre as classes dominantes, ambições pessoais pareciam desconhecidas; em lugar nenhum encontramos o nome de um autor ligado a uma obra-de-arte nem o registro dos feitos de um soberano."
Em nossa época, quando "o amor à paz, o horror à tirania e o respeito à lei" podem ser requisitos para nossa sobrevivência, as diferenças entre o espírito de Creta e os de seus vizinhos guarda interesse mais do que acadêmico. Nas cidades cretenses sem fortificações militares, as villas "desprotegidas" à beira-mar e a falta de qualquer sinal de que as diversas cidades-estados no interior da ilha lutassem umas com as outras ou participassem de guerras agressivas (em marcante contraste com as cidades muradas e violentas guerras que em outras partes já eram norma), encontramos esta firme confirmação de nosso passado demonstrando que nossas esperanças de uma coexistência humana pacífica não são, como em geral nos dizem, "sonhos utópicos". E nas imagens míticas de Creta – a Deusa como Mãe do universo, e os seres humanos, animais, plantas, água e céu como suas manifestações na terra — descobrimos o reconhecimento de nossa unidade com a natureza, tema que hoje também ressurge como pré requisito para a sobrevivência ecológica.


trecho de O Cálice e a Espada- RIANE EISLER

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