O poder das ancas
O que constitui um corpo saudável no mundo instintivo? No nível mais básico
— o seio, o ventre, qualquer parte onde haja pele, qualquer parte onde haja neurônios
para transmitir sensações — a questão não é a do formato, do tamanho, da cor, da
idade; mas, sim, se existe sensação, se funciona como deveria, se temos reações, se
temos todo um leque, todo um espectro de sentimentos. Ele tem medo, está
paralisado pela dor ou pelo receio? Está anestesiado por traumas antigos? Ou será
que ele tem sua própria música? Está ouvindo, como Baubo, através do ventre? Está
olhando com uma das suas inúmeras formas de ver?
Baubo: a Deusa do ventre
Há uma expressão muito forte que diz: Dice entre las piernas, "ela fala do
meio das pernas". Essas pequenas histórias "do meio das pernas" são encontradas em
todo o mundo. Uma delas é a história de Baubo, uma deusa da Grécia antiga, a
chamada "deusa da obscenidade". Ela tem nomes mais antigos, como por exemplo
Iambe, e aparentemente os gregos a adotaram de culturas muito mais antigas.
Sempre houve deusas selvagens arquetípicas da sexualidade sagrada e da fertilidade
da vida-morte-vida desde o início dos tempos.
Conhece-se apenas uma referência escrita a Baubo remanescente de tempos
remotos, dando a nítida impressão de que seu culto foi destruído e soterrado pelas
diversas conquistas. Tenho a forte sensação de que em algum ponto, talvez debaixo
daqueles morros silvestres e lagos de florestas na Europa e no Oriente, existam
templos dedicados a ela, templos lotados de artefatos e ícones de marfim.
Portanto, não é por acaso que poucos ouviram falar de Baubo mas, lembrem se,
precisamos apenas de um fragmento para reconstituir o todo. E temos esse
fragmento, porque temos uma história em que Baubo aparece. Ela é uma das
divindades mais adoráveis e picarescas que habitaram o Olimpo. Esta é a minha
versão da cantadora, baseada num resquício selvático de Baubo que ainda cintila na
mitologia grega pós-matriarcal e nos hinos homéricos.
A HISTORIA DE BAUBO
um dia brincando ao ar livre. Perséfone encontrou por acaso uma flor de rara beleza e
estendeu os dedos para tocar seu lindo cálice. De repente, a terra começou a tremer e
uma gigantesca fenda se abriu em ziguezague. Das profundezas da terra chegou
Hades, o deus dos Infernos. Ele chegou alto e majestoso numa biga negra puxada por
quatro cavalos da cor de fantasmas.
Hades apanhou Perséfone, levando-a para sua biga, em meio a uma confusão
de véus e sandálias. Ele guiou, então seus cavalos cada vez mais para dentro da terra.
Os gritos de Perséfone foram ficando cada vez mais fracos à medida que a fenda foi se
fechando como se nada tivesse acontecido. Por toda a terra, abateu-se um silêncio e o
perfume de flores esmagadas.
E a voz da donzela a gritar ecoou nas pedras das montanhas e borbulhou num
lamento vindo do fundo do mar. Deméter ouviu os gritos das pedras. Ela ouviu,
também, o choro das águas. Arrancou, então, a grinalda dos seus cabelos imortais,
deixou cair de cada ombro seus véus escuros e saiu a sobrevoar a terra como uma ave
enorme, procurando, chamando por sua filha.
Naquela noite, uma velha à frente de uma gruta comentou com suas irmãs que
havia ouvido três gritos naquele dia um, o de uma voz jovem que gritava de pavor;
um outro que implorava ajuda; e um terceiro, o de uma mãe que chorava.
Não se via Perséfone em parte alguma. E assim começou a procura longa e
enlouquecida de Deméter por sua filha querida. Deméter esbravejava, chorava,
gritava, fazia perguntas, procurava debaixo, dentro e em cima de todos os acidentes
geográficos, implorava por misericórdia, implorava pela morte, mas não conseguia
encontrar sua filha amada.
Assim, ela, que havia gerado o crescimento perpétuo tudo, amaldiçoou todos
os campos férteis do mundo, gritando na sua dor.
— Morram! Morram! Morram!
Em decorrência da maldição de Deméter, nenhuma criança poderia nascer,
nenhum trigo poderia crescer para se fazer pão, nenhuma flor para as festas, nenhum
ramo para os mortos. Tudo ficou murcho e esgotado na terra crestada e nos seios
secos.
A própria Deméter não mais se banhava. Seus mantos estavam encharcados de
lama; seus cabelos pendiam em cachos imundos. Muito embora a dor no seu coração
fosse tremenda, ela não se entregava. Depois de muita investigação, de muitos
pedidos e de muitos incidentes, tudo levando a nada, ela afinal perdeu as forças ao
lado de um poço numa aldeia onde não era conhecida. E quando recostou seu corpo
dolorido n pedra fresca do poço, chegou por ali uma mulher, ou melhor, uma espécie
de mulher. E essa mulher chegou dançando até Deméter, balançando os quadris de
um jeito que sugeria a relação sexual, e balançando os seios nessa sua pequena dança.
E, quando Deméter a viu, não pôde deixar de sorrir um pouco.
A fêmea que dançava era realmente mágica, pois não tinha nenhum tipo de
cabeça, seus mamilos eram seus olhos e sua vulva era sua boca. Foi com essa
boquinha que ela começou a regalar Deméter com algumas piadas picantes e
engraçadas. Deméter começou a sorrir, depois deu um risinho abafado e em seguida
uma boa gargalhada. Juntas, as duas mulheres riram, a pequena deusa do ventre,
Baubo, e a poderosa deusa mãe da terra, Deméter.
E foi exatamente esse riso que tirou Deméter da sua depressão e lhe deu
energia para prosseguir na sua busca pela filha, que acabou em sucesso, com a ajuda
de Baubo, da velha Hécate, e do sol Hélios. Restituíram Perséfone à sua mãe. O
mundo, a terra e o ventre das mulheres voltaram a vicejar.
Sempre gostei mais dessa pequena Baubo do que de outras deusas na
mitologia grega, talvez mais do que de qualquer outra figura, ponto final. Ela sem
dúvida tem como origem as deusas do ventre do período neolítico, que são
misteriosas figuras sem cabeça e às vezes sem pés e sem braços. É insignificante
chamá-las de figuras de fertilidade, porque elas são muito mais do que isso. Elas são
talismãs da conversa da mulher — vocês sabem, aquele tipo de conversa que as
mulheres nunca, nunca mesmo, teriam na frente de um homem, a não ser que fosse
sob circunstâncias raras. Esse tipo de conversa.
Elas representam sensibilidades e expressões exclusivas em todo o mundo: os
seios, e o que é sentido dentro desses bichinhos sensíveis, os lábios da vulva, nos
quais a mulher tem sensações que outros podem imaginar mas que só ela sabe. E a
gargalhada é um dos melhores remédios que a mulher pode ter.
Sempre considerei que o kaffeeklatsch era um remanescente de algum antigo
rito feminino de reunião, um ritual de conversa íntima, mulheres falando com suas
entranhas, dizendo a verdade, rindo até parecerem bobas, revigoradas, de volta ao
lar, sentindo tudo melhor.
Às vezes é difícil conseguir que os homens se afastem para que as mulheres
possam ficar a sós. Só sei que antigamente as mulheres estimulavam os homens a
fazer uma "excursão de pesca". Trata-se de um ardil usado pelas mulheres desde
tempos imemoriais com o objetivo de fazer com que os homens saíssem por algum
tempo a fim de que elas pudessem ficar sozinhas ou só com outras mulheres. As
mulheres desejam estar numa atmosfera exclusivamente feminina de quando em
quando, quer sós quer com outras. Trata-se de um ciclo feminino natural.
A energia masculina é agradável. Ela é mais do que agradável; ela é
exuberante, grandiosa. No entanto, ela às vezes lembra um banquete de chocolates.
Depois, ansiamos por arroz frio e puro durante alguns dias e um caldo quente e
simples para limpar a boca. Precisamos fazer isso de vez em quando.
Além do mais, a pequena deusa Baubo nos dá a idéia interessante de que um
pouco de obscenidade pode ajudar a desfazer uma depressão. E é verdade que certos
tipos de riso, que provêm de todas as histórias que as mulheres contam umas para as
outras, histórias que são tão apimentadas ao ponto de serem de total mau gosto...
essas histórias ativam a libido. Elas acendem o fogo do interesse da mulher pela vida.
A Deusa do ventre e a gargalhada são o que procuramos.
Agora não posso me estender muito acerca dos dois aspectos seguintes na
história de Baubo, pois eles se destinam a ser debatidos em pequenos grupos e
somente entre mulheres, mas posso afirmar o seguinte: Baubo tem um outro aspecto
— ela vê com os mamilos. É um mistério para os homens, mas as mulheres em
seminários concordam entusiasticamente e dizem saber exatamente do que estou
falando.
Ver com o mamilos é sem dúvida uma qualidade sensorial. Os mamilos são
órgãos psíquicos, sensíveis à temperatura, ao medo, à raiva, ao barulho. Eles são
órgãos dos sentidos tanto quando os olhos na cabeça.
E quanto a "falar com a vulva", trata-se simbolicamente de falar a partir da
primae materia, o nível mais básico e honesto da verdade — a boca vital. O que mais
haveria a dizer além de que Baubo fala do filão mestre, da mina profunda,
literalmente das profundezas. Na história em que Deméter procura sua filha,
ninguém sabe que palavras Baubo teria realmente dito a Deméter. Mas podemos ter
algumas idéias.
Uma viagem a Ruanda
Michigan. Depois de preparar o café da manhã e o almoço para quarenta pessoas,
todas as minhas parentas redondas e bonitas, minha mãe e minhas tias, estavam
deitadas ao sol em espreguiçadeiras, conversando e contando piadas. Os homens
estavam "pescando" — o que significava que eles estavam se divertindo, dizendo
palavrões e contando suas próprias histórias e piadas. Eu estava brincando por perto
das mulheres.
De repente, ouvi uns guinchos agudos. Alarmada, corri para onde as mulheres
estavam. Mas elas não estavam gritando de dor. Elas estavam rindo, e uma das
minhas tias não parava de repetir sempre que recuperava o fôlego entre os gritos, "...
cobriram o rosto... cobriram o rosto!" Essa frase misteriosa provocava novos acessos
de riso em todas elas.
Elas ficaram muito tempo gritando, guinchando e recuperando o fôlego para
voltar a guinchar. No colo de uma das minhas tias havia uma revista. Mais tarde,
quando todas elas cochilavam ao sol, tirei a revista da sua mão adormecida e me
deitei debaixo da espreguiçadeira lendo com os olhos espantados. Na página havia
um caso da Segunda Guerra Mundial. Eis o que dizia:
Bornéu. Poderia ter sido o general MacArthur. Os nomes não significavam muito
para mim naquela época.] O governador queria que todas as mulheres nativas se
postassem ao longo da estrada de terra para dar vivas e acenar em boas-vindas a
Eisenhower quando ele passasse no seu jipe. O único problema era que as mulheres
nativas nunca usavam roupa a não ser um colar de contas e às vezes um minúsculo
cinto de correia.
Não, não, isso não seria conveniente. Portanto, o governador chamou o chefe
da tribo e lhe falou do seu problema.
— Não se preocupe — disse o chefe. Se o governador conseguisse algumas
dúzias de saias e blusas, ele se certificaria de que as mulheres se apresentariam
vestidas nesse acontecimento especial. E esses trajes o governador e os missionários
da região conseguiram obter.
No entanto, no dia do desfile e apenas poucos minutos antes de Eisenhower
descer pela longa estrada no seu jipe, descobriu-se que apesar de todas as mulheres
estarem usando obedientemente as saias, elas não haviam gostado das blusas e as
haviam deixado em casa. Pois agora todas as mulheres; estavam enfileiradas dos dois
lados da estrada, com saias, mas com o peito nu, e sem mais nenhuma roupa, nem
mesmo roupa de baixo.
Ora, o governador ficou apoplético ao saber disso e convocou, irado, o chefe.
Este lhe assegurou que sua mulher havia conversado com ele, garantindo-lhe que as
mulheres haviam concordado com um plano para cobrir os seios quando o general
estivesse passando.
— Você tem certeza? — berrou o governador.
— Tenho toda a certeza — respondeu o chefe. Bem, não havia muito tempo
para discutir, e nós só podemos tentar adivinhar qual foi a reação do general
Eisenhower quando seu jipe veio passando ruidoso e uma mulher de seios nus atrás
da outra levantava graciosamente a frente da saia rodada e cobria o rosto com ela.
Fiquei deitada debaixo da espreguiçadeira abafando meu riso Era a história
mais tola que eu já havia ouvido. Era uma história maravilhosa, uma história
excitante. Mas por intuição eu sabia também que ela era ilícita, por isso guardei-a
para mim por muitos e muitos anos. E às vezes em meio a situações difíceis, em
épocas de tensão e mesmo antes de fazer provas na faculdade, eu pensava nas
mulheres de Ruanda cobrindo o rosto com a saia, e sem dúvida rindo por trás dela. E
eu ria e me sentia firme, forte, com os pés na terra.
Esse é sem dúvida o outro benefício das piadas e do ris compartilhado das
mulheres. Tudo se torna um remédio para os tempos difíceis, um fortificante para
mais tarde. É uma diversão boa, limpa, suja. Podemos imaginar o sexual e o
irreverente como algo sagrado? Podemos, especialmente se atua como medicamento.
Jung observou que, se alguém procura seu consultório queixando-se por um motivo
sexual, o verdadeiro motivo muitas vezes era mais um problema do espírito e da
alma. Quando uma pessoa relatava um problema de natureza espiritual, muitas vezes
era na realidade um problema de ordem sexual.
Nesse sentido, a sexualidade pode ser imaginada como um bálsamo para o
espírito, sendo, portanto, sagrada. Quando o riso sexual é medicinal, ele é um riso
sagrado. E aquilo que provoca o riso medicinal é também sagrado. Quando o riso
ajuda sem prejudicar, quando ele alivia, reorganiza, põe em ordem, reafirma a força e
o poder, esse é o riso que gera a saúde. Quando o riso deixa as pessoas alegres por
estarem vivas, felizes por estarem aqui, com maior consciência do amor, elevadas
pelo eros, quando ele desfaz sua tristeza e as isola da raiva, ele é sagrado. Quando elas
se tornam maiores, melhores, mais generosas, mais sensíveis, ele é sagrado.
No arquétipo da Mulher Selvagem, há muito espaço para a natureza das
deusas sujas. Na natureza selvagem, o sagrado e o irreverente, o sagrado e o sexual,
não estão separados, mas vivem juntos como imagino um grupo de velhas esperando
na estrada que nós apareçamos. Elas estão ali na sua psique, esperando que você
apareça, experimentando suas histórias umas com as outras e rindo como loucas.
Clarissa Pinkola Estes ,IN MULHERES QUE CORREM COM OS LOBOS
2 comentários:
Este texto é interessante, é atual, é divino… parabéns
Este texto é interessante, é atual, é divino… parabéns
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