"E aqueles que pensam em Me procurar, saibam que a vossa busca e vosso anseio devem beneficiar-vos apenas se vós souberdes o Mistério; se o que vós procurardes, vós não achardes dentro de vós mesmos, então nunca encontrarão fora. Pois eu tenho estado convosco desde o Início e Eu Sou Aquela que é alcançada ao final do desejo"


domingo, 20 de dezembro de 2009

UM NOVO MUNDO NÃO É UMA UTOPIA



RUPTURA NA EVOLUÇÃO: RUMO A UM FUTURO DE
PARCERIA


As visões futuristas dos autores de ficção científica estão repletas de invenções tecnológicas
inacreditáveis. Contudo, de modo geral, o mundo da ficção científica é despojado singularmente
de novas invenções sociais. Na verdade, mais freqüentemente do que eles imaginam, leva-nos para o passado enquanto parecemos estar progredindo no tempo. Seja em Duna1, de Frank Herbert, ou em Guerra nas Estrelas, de George Lucas, o que freqüentemente encontramos é na realidade uma organização social de imperadores feudais e suseranos medievais transpostos para um universo de guerras intergaláticas de alta tecnologia.
Após cinco mil anos de vida em uma sociedade dominadora, de fato toma-se difícil imaginar um mundo diferente. Charlotte Perkins Gilman tentou fazê-lo, em Herland. Escrita em 1915, essa utopia sobre uma sociedade pacífica e altamente criativa em que o trabalho mais
valorizado e recompensado — prioridade social numero um — era o desenvolvimento físico,
mental e espiritual das crianças. O atrativo da história era o fato de apresentar um mundo onde todos os homens se haviam exterminado em uma guerra final, e o grupo de mulheres sobreviventes, em surpreendente mutação, havia salvado sua metade da humanidade, aprendendo a reproduzir-se sozinhas.
Mas, como vimos, o problema não são os homens como sexo, mas homens e mulheres como são socializados em um sistema dominador. Havia homens e mulheres no neolítico e em Creta. Havia homens e mulheres entre os pacíficos !Kung e BaMbuti. Até mesmo em nosso mundo de supremacia masculina, nem todas as mulheres são pacíficas e tolerantes, assim como muitos homens o são.
É claro que tanto homens quanto mulheres possuem o mesmo potencial para os mais diversos comportamentos. Mas, à semelhança da couraça ou concha externa que envolve os insetos
e outros artrópodes, a organização social androcrática envolve ambas as metades da humanidade em papéis rígidos e hierárquicos que impedem o desenvolvimento. Se considerarmos nossa evolução a partir de uma perspectiva da androcracia e gilania como duas possibilidades de organização social humana, veremos que não é acidental o fato de os sociobiólogos que hoje procuram revitalizar a ideologia androcrática com outra infusão do darwinismo social do século XIX citarem sociedades de insetos comi tanta freqüência, de modo a sustentar suas teorias. Tampouco é coincidência o fato de seus trabalhos ressaltarem a visão de que o modelo normativo para a supremacia social hierárquica e rígida — o modelo masculinodominador/femininodominado das relações humanas — é pré-programado em nossos genes. De acordo com inúmeros cientistas, a evolução não é predeterminada. Ao contrário, desde os primórdios temos sido ativos co-autores de nossa própria evolução. Por exemplo, como descreveu Sherwood Washbum, nossa invenção das ferramentas constituiu causa e efeito da locomoção bípede e da postura ereta, que deixaram nossas mãos livres para a elaboração de tecnologias cada vez mais complexas.5 E, com a crescente complexidade da tecnologia e da sociedade, a sobrevivência de nossa espécie tomou-se gradativamente dependente da direção não de nossa evolução biológica, mas de nossa evolução cultural. A evolução humana na atualidade encontra-se em uma encruzilhada. Desnudada até sua essência, a tarefa humana central consiste em saber como organizar a sociedade de forma a promover a sobrevivência de nossa espécie e o desenvolvimento dos potenciais que só a nós pertencem. Ao longo deste livro, vimos que a androcracia não é capaz de corresponder a esta exigência, em razão de sua ênfase intrínseca nas tecnologias de destruição, sua dependência em
relação à violência como forma de controle social e das tensões engendradas cronicamente porum modelo dominador-dominado das relações humanas, no qual ela se baseia. Vimos também que
uma sociedade gilânica ou de parceria, simbolizada pelo Cálice provedor e intensificador da vida
em vez da Espada letal, nos oferece uma alternativa viável. A questão é: como chegar lá?
Uma nova visão da realidade
Segundo cientistas como Ilya Prigogine e Niles Eldredge, as bifurcações ou ramificações
evolutivas nos sistemas químicos e biológicos envolvem uma grande proporção de acaso.6 Mas
para o teórico da evolução Erwin Laszlo, bifurcações nos sistemas sociais humanos envolvem
também uma grande possibilidade de escolha. Os seres humanos, observa ele, "possuem a
habilidade de agir consciente e coletivamente", praticando a previsão na "escolha de seu próprio
caminho evolutivo". Ele acrescenta que em nossa "época crucial" não "podemos deixar a seleção
do próximo passo na evolução da sociedade e cultura humanas a cargo do acaso. Precisamos
planejá-lo consciente e propositadamente".7 Ou, de acordo com o biólogo Jonas Salk, nossa
necessidade mais urgente e premente está em fornecer àquele maravilhoso instrumento, a mente humana, os meios de imaginar e, conseqüentemente, criar um mundo melhor.8
A princípio, isso pode parecer uma tarefa muito difícil. Mas, como vimos, nossas visões da
realidade — do que é possível e desejável — são produto da história. E talvez a melhor prova de
que nossas idéias, símbolos, mitos e comportamentos podem ser modificados esteja na evidência
de que tais mudanças na verdade foram efetuadas em nossa pré-história. Vimos como a imagem da mulher era venerada e respeitada na maior parte do mundo
antigo, e como as imagens de mulheres como simples objetos sexuais a serem possuídos e dominados pelos homens só passaram a predominar após as conquistas androcráticas. Vimos
também de que forma o significado de símbolos como a árvore da sabedoria e a serpente que muda de pele em renovação periódica foram completamente alterados após aquela bifurcação crítica em nossa evolução cultural. Hoje, parecendo estar firmemente associados à terrível punição pelo questionamento da dominação masculina e da lei androcrática, até há pouco tempo, em termos evolutivos, esses mesmos símbolos eram considerados manifestação da sede humana de liberação através do conhecimento místico ou superior. Vimos que, até mesmo após a imposição da regra androcrática, o significado de nossos símbolos mais importantes muitas vezes sofreu radical transformação através do impacto do
ressurgimento gilânico ou regressão androcrática. Notável exemplo é o da cruz. O significado
original das cruzes entalhadas em estatuetas pré-históricas da Deusa e outros objetos religiosos
parece ter sido o de sua identificação com o nascimento e crescimento da vida vegetal, animal e
humana. Esse significado sobreviveu nos hieróglifos egípcios, onde a cruz representa a vida e o
viver, constituindo parte de palavras tais como saúde e felicidade. Posteriormente, depois que
pregar pessoas em estacas tomou-se forma comum de executá-las (como demonstrado nas artes assíria, romana e outras artes androcráticas), a cruz tomou-se o símbolo da morte. Ainda mais
tarde, os seguidores mais gilânicos de Jesus outra vez tentaram transformar a cruz onde ele fora executado em um símbolo do renascimento — símbolo associado a um movimento social que se
iniciou com a intenção de pregar e praticar a igualdade humana e conceitos "femininos" tais como a tolerância, a compaixão e a paz.
Em nossa época, séculos depois de este movimento ter sido cooptado pelo sistema androcrático/dominador, o modo de interpretar os símbolos e mitos primitivos ainda representa importante papel na forma como planejamos nosso futuro. Ao mesmo tempo que alguns de nossos líderes políticos e religiosos nos fazem acreditar que um Armagedom nuclear pode de fato ser a vontade de Deus, estamos testemunhando uma extensa reafirmação do desejo de vida e não de morte, em um movimento veloz e na verdade sem precedentes, de restauração dos antigos mitos e símbolos, conferindo-lhes seu significado gilânico original.
Por exemplo, artistas como Imogene Cunningham e Judy Chicago, pela primeira vez na
história registrada, estão usando imagens sexuais femininas sob formas que lembram
extraordinariamente os simbolismos paleolítico, neolítico e cretense de nascimento, renascimento e transformação. Também pela primeira vez na história registrada, imagens da natureza tais como focas, pássaros, golfinhos e as florestas e pastagens verdes — outrora símbolos da unidade de toda a vida sob o poder divino da Deusa — estão sendo usadas pelo movimento ecológico para redespertar em nós a consciência de nossa ligação essencial com nosso meio ambiente natural. Com freqüência, inconscientemente, o processo de desenredar e voltar a tecer o tecido de nossa tapeçaria mítica em padrões mais gilânicos — nos quais as virtudes "masculinas" tais como a "conquista da natureza" não são mais idealizadas — na verdade já está em progressão. O que ainda falta é a "massa crítica" de novas imagens e mitos necessária a sua realização por um número suficiente de pessoas.
Talvez mais importante seja o fato de mulheres e homens estarem cada vez mais questionando a premissa mais fundamental da sociedade androcrática: a de que a dominação e violência masculinas e belicosas sejam inevitáveis. Entre os estudos de antropólogos que defendem
esta opinião, num estudo de comparação de culturas realizado por Shirley e John McConahay,
eles descobriram importante correlação entre estereótipos sexuais rígidos, necessários à
manutenção da dominação masculina, e a incidência não só da guerra, mas também do
espancamento de esposas e filhos e o estupro. Como será detalhado em um segundo livro, que
continuará nossos relatórios, estas correlações de sistemas são verificadas por um número crescente de estudos novos realizados precisamente porque os cientistas de muitas disciplinas estão começando a questionar os modelos da realidade predominantes.17 Além disso, estudando ambas as metades da humanidade, os cientistas atualmente estão expandindo nosso conhecimento sobre as possibilidades para a sociedade humana, bem como para a evolução da consciência humana.
De fato, sob a perspectiva da teoria de transformação cultural, o muito que se escreveu a
respeito da moderna "revolução na consciência" pode ser considerado como a transformação da
consciência androcrática para a gilânica.19 Um indício importante dessa transformação está em
que, pela primeira vez na história registrada, muitas mulheres e homens estão desafiando os mitos destrutivos tais como o do "herói assassino".20 Eles estão se dando conta do que verdadeiramente estas histórias "heróicas" que vão de Teseu a Rambo e James Bond estão nos ensinando, e também exigem que crianças de ambos os sexos sejam ensinadas a valorizar o cuidado e a associação em vez da conquista e dominação. Na Suécia, as leis já foram decretadas de forma a proibir a venda de brinquedos de guerra, que tradicionalmente serviam para ensinar aos meninos a falta de empatia com aqueles que eles ferem, bem como todas as outras atitudes e comportamentos necessários aos
homens que matam outros da mesma espécie.
E demonstrações de paz realizadas por milhões de pessoas em todo o mundo são indícios dramáticos de uma renovada consciência de nossa conexão
com toda a humanidade.
Homens e mulheres de todo o mundo, pela primeira vez em número tão elevado, estão
desafiando o modelo masculino-dominador/feminino-dominado para as relações humanas que é o alicerce de uma visão de mundo dominadora. Ao mesmo tempo que a idéia da "guerra entre o
sexos" está sendo exposta como conseqüência desse modelo, seu subseqüente resultado de enxergar o "outro" como "inimigo" também vem sendo desafiado. E, o que é mais importante, há uma crescente percepção de que a consciência mais apurada de nossa "parceria" se relaciona
inteiramente com um reexame e transformação fundamentais dos papéis de homens e mulheres.
Segundo a psiquiatra Jean Baker Miller, na sociedade atualmente constituída, só as
mulheres estão "aparelhadas para serem veículo da necessidade básica de comunhão humana" e, na verdade, para dar valor a sua associação com outros seres até mais do que a si mesmas. Em contraste com os homens, em geral condicionados socialmente para o objetivo de realizar seus
próprios fins até mesmo à custa de outros, as mulheres são condicionadas de forma a se verem sobretudo como responsáveis pelo bem-estar de outrem, até mesmo à custa de seu próprio bem estar. Esta dicotomização da experiência humana, de acordo com a vasta documentação de
Miller, cria distorções psíquicas tanto em mulheres quanto em homens. As mulheres tendem a se identificar tanto com os outros que a ameaça de perda, ou mesmo ruptura de uma associação, pode ser, segundo ela, "percebida não só como a perda de um relacionamento, mas como algo mais próximo de uma perda total do eu". Os homens, por outro lado, com freqüência costumam considerar suas necessidades humanas de associação como um "obstáculo" ou um "perigo". Assim, eles podem perceber a assistência a outros não como algo fundamental, mas, ao contrário, como algo secundário para sua imagem de si mesmos, algo que um homem "só pode desejar ou fazer após realizar as exigências primordiais da masculinidade". Essa concepção de papéis sexuais e da realidade é, como vimos, fundamental a uma sociedade androcrática. Mas, de acordo com Miller, "é extremamente importante reconhecer que o impulso em direção à associação que as mulheres sentem no seu interior não é equivocado nem
retrógrado. (...) O que não se tem reconhecido é que este ponto de partida psíquico contém a
possibilidade para um enfoque inteiramente diferente (e mais avançado) da vida e do
funcionamento — muito diferente do enfoque fomentado pela cultura dominante. (...) Ele
permite o surgimento da verdade: para todos — tanto homens quanto mulheres — o
desenvolvimento individual só ocorre por meios de associação".
Essas novas formas de imaginar a realidade para homens e mulheres vêm permitindo o
surgimento de novos modelos da psique humana. O antigo modelo freudiano via os seres humanos principalmente em termos de impulsos elementares tais como a necessidade de alimento, sexo e segurança. Os novos modelos propostos por Abraham Maslow e outros psicólogos humanistas levam em consideração essas necessidades elementares de "defesa", mas reconhecem também que os seres humanos possuem níveis mais elevados de necessidades de "crescimento" ou "realização" que os distinguem de outros animais. Este deslocamento das necessidades de defesa para as de realização é fundamental na transformação de uma sociedade dominadora para uma sociedade de parceria. As hierarquias mantidas pela força ou pela ameaça de força exigem hábitos defensivos por parte da mente. Em nosso tipo de sociedade, a criação de inimigos do homem começa com seu gêmeo humano, a mulher, a qual, na mitologia predominante, é culpada nada mais do que da expulsão do paraíso. E tanto para homens quanto para mulheres, esta supremacia de uma metade da humanidade sobre a outra, como observou Alfred Adier, envenena todas as relações humanas.
As observações de Freud afirmam que a psique androcrática constitui de fato uma massa
de conflitos internos, tensões e medos. Mas, conforme passamos da androcracia à gilania, um
número cada vez maior de pessoas começa a sair da defesa para o crescimento. Como observou
Maslow ao estudar civilizações criativas e empreendedoras, na verdade, em vez de nos tomarmos mais egoístas e egocêntricos, cada vez mais nos voltamos para uma realidade diferente: a "experiência culminante" da percepção de nossa interligação essencial com toda a humanidade.

Nova ciência e nova espiritualidade

O tema de nossa interligação — a qual Jean Baker Miller denomina associação, Jessie
Bemard chama "o ethos feminino de amor/dever" e Jesus, Gandhi e outros líderes espirituais
denominaram simplesmente amor — hoje é também tema da ciência. Esta "nova ciência" em
desenvolvimento — da qual a teoria do "caos" e o estudo feminista são partes integrantes — pela
primeira vez na história enfoca mais os relacionamentos do que as hierarquias.
De acordo com o físico Fritjof Capra, este enfoque mais holístico representa um afastamento radical de grande parte da ciência ocidental, a qual se tem caracterizado por uma visão hierárquica, excessivamente compartimentalizada e muitas vezes mecanicista.34 Por diversas razões, este é um enfoque mais "feminino", pois se diz que as mulheres pensam mais "intuitivamente", tendendo a tirar conclusões de uma totalidade de impressões simultâneas e não por meio de pensamento "lógico" gradativo.
Salk escreve a respeito de uma nova ciência da empatia, ciência esta que utilizará a razão e
a intuição "para efetuar uma mudança na mente coletiva, a qual influenciará de forma construtiva o curso do futuro humano". Este enfoque da ciência — utilizado com sucesso pela geneticista Barbara McClintock, que em 1983 ganhou o Prêmio Nobel — abordará a sociedade humana como sistema vivo do qual todos nós somos parte. Como salientou Ashley Montagu, será a ciência coerente com o verdadeiro e original significado da educação: buscar e fazer desenvolver as potencialidades inatas do ser humano. Acima de tudo, como Hillary Rose escreve em "Mão, Cérebro e Coração: Uma Epistemologia Feminista para as Ciências Naturais", a ciência não se voltará mais "para a dominação da natureza ou da humanidade como parte da natureza".
Evelyn Fox Keller, Carol Christ, Rita Arditti e outras estudiosas observam como, sob o
manto protetor da "objetividade" e da "independência de campo", a ciência tem muitas vezes negado os temas da solicitude considerados excessivamente femininos pela visão tradicional, por serem "não científicos" e "subjetivos".40 Assim, a ciência até o momento tem, de forma geral, excluído as mulheres como cientistas e concentrado seus estudos quase inteiramente nos homens. Ela também tem excluído o que podemos denominar "conhecimento da solicitude": conhecimento de que, segundo Salk, necessitamos com urgência na atualidade, a fim de selecionar aquelas formas humanas que estão "em cooperação com a evolução, em vez das formas contrárias à sobrevivência ou à evolução".
Esta nova ciência é também um importante passo na direção de ultrapassar a distância
moderna entre a ciência e a espiritualidade, a qual em grande medida é o produto de uma visão de mundo que relega a empatia para as mulheres e os homens "afeminados". Os cientistas começam a reconhecer que — assim como o conflito artificial entre espírito e natureza, entre homem e mulher, e entre diferentes raças, religiões e grupos étnicos incentivado pela mentalidade dominadora — o modo como vemos o próprio conflito precisa ser reexaminado.
Como escreve Miller, voltando sua pesquisa para a realização, e não para a defesa, a
questão não é saber como eliminar o conflito, o que é impossível. Como entram em contato
indivíduos com diferentes necessidades, desejos e interesses, o conflito é inevitável. A questão que trata diretamente da possibilidade de conseguirmos transformar nosso mundo da coexistência belicosa para a coexistência pacífica está em saber como tornar o conflito produtivo e não destrutivo. Como resultado do que ela denomina conflito produtivo, Miller mostra como indivíduos, organizações e nações podem crescer e mudar. Aproximando-se da outra com diferentes interesses e objetivos, cada parte no conflito será forçada a reexaminar seus próprios objetivos e atos, bem como os da outra parte. O resultado para ambos os lados será a mudança produtiva, em vez da rigidez improdutiva. O conflito destrutivo, em contraste, é a equiparação do conflito com a violência exigida na manutenção das hierarquias dominantes.
No sistema predominante, aponta Miller, "o conflito é mostrado como se sempre aparecesse na imagem do extremismo, quando na verdade o que leva ao perigo é a falta de reconhecimento da necessidade do conflito e da provisão de formas a ele adequadas. Esta forma destrutiva última é aterrorizante, mas também não é conflito. E quase o inverso; é o resultado final
da tentativa de evitar e suprimir o conflito".
Embora esse enfoque dominador destrutivo, em relação ao conflito, ainda seja
esmagadoramente predominante, o sucesso de enfoques menos violentos e mais "femininos" ou
"passivos" na resolução do conflito oferece esperanças concretas de mudança. Estes enfoques têm raízes antigas. Na história registrada Sócrates e posteriormente Jesus fizeram uso delas. Nos tempos modernos elas são mais conhecidas e personificadas em homens como Gandhi e Martin Luther King — com quem a androcracia lidou matando e canonizando. Até o momento, porém, sua grande utilização tem sido feita pelas mulheres. Exemplo notável é o de como nos séculos XIX e XX as mulheres lutaram sem violência contra leis injustas. Para obterem o acesso à informação sobre planejamento familiar, tecnologias de controle da natalidade e o direito de voto, elas se permitiram ser presas e escolheram entrar em greves de fome, em vez de utilizarem a força ou a ameaça de força para conseguir seus fins.
Este uso do conflito não violento como forma de obter mudanças sociais não se limita à
simples resistência passiva ou não violenta. Recusando-se a cooperar com a violência e a injustiça através da utilização de meios violentos e injustos, obtém-se a criação da energia de transformação positiva, por Gandhi denominada satyagraha ou "força da verdade". Como afirmou Gandhi, o objetivo é transformar o conflito, em vez de suprimi-lo ou fazê-lo explodir em violência. Igualmente decisivo no remodelamento da evolução cultural é o atual reexame do modo como definimos o poder. Ao escrever sobre a visão de poder ainda predominante, Miller observa como a chamada necessidade de controlar e dominar outrem representa psicologicamente uma função não de uma sensação de poder, mas, ao contrário, de uma sensação de impotência. Fazendo a distinção entre "poder para si e poder sobre os outros", ela escreve: "O poder de outras pessoas, ou grupo de pessoas, em geral era visto como perigoso. Você precisava controlá-los ou eles iriam controlá-lo. Mas no domínio do desenvolvimento humano esta não é uma formulação válida. Ao contrário. No sentido básico, quanto maior o desenvolvimento de cada indivíduo, mais capaz, mais eficaz e menos necessitado de limitar ou restringir outrem será esse indivíduo." Tema central da literatura feminista do século XX tem sido a investigação não só das
relações de poder existentes, mas também de formas alternativas de perceber e utilizar o poder; o poder como associação. Este tema tem sido explorado por Robin Morgan, Kate Millett, Elizabeth Janeway, Berit Aas, Peggy Antrobus, Marielouise Janssen-Jurreit, Tatyana Mamonova, Kathleen Barry, Devaki Jain, Caroline Bird, Brigit Brock-Utne, Diana Russell, Perdita Huston, Andrea Dworkin, Adrienne Rich, para citar apenas algumas.47 Descrita em expressões como "irmandade é poder", esta visão do poder como não destrutivo é um dos enfoques que as mulheres cada vez mais têm trazido consigo à medida que adentram o mundo dos "homens", deixando sua posição de
"mulheres". Esta é uma visão "vencedor-vencedor", em vez de "vencedor-perdedor" do poder em termos psicológicos, um meio de progressão do próprio desenvolvimento sem ser preciso limitar o desenvolvimento dos outros. Em termos visuais ou simbólicos, esta é a representação do poder como união. Desde tempos imemoriais, ele tem sido simbolizado pela forma circular ou oval — o ovo cósmico da Deusa ou Grande Roda — em vez das linhas recortadas de uma pirâmide onde, como deuses ou chefes de nações ou famílias, os homens governam do alto. Há muito suprimido pela ideologia androcrática, o segredo da transformação expresso pelo Cálice era considerado em tempos mais antigos como a consciência de nossa unidade ou ligação com o outro e com todo o restante do
universo. Grandes videntes e místicos continuaram expressando esta visão, ao descrevê-la como o poder transformador do que os cristãos primitivos denominavam ágape, união elementar entre os seres humanos, a qual, na distorção característica da androcracia, é chamada amor "fraterno". Em essência, é o tipo de amor desprendido que uma mãe nutre pelos filhos, outrora expresso
misticamente como o amor divino da Grande Mãe pelos filhos humanos.
Neste sentido, nossa nova vinculação com a antiga tradição espiritual de adoração à Deusa,
aliada a um modelo de sociedade de parceria, consiste em mais do que reafirmação da dignidade e valor de metade da humanidade. Tampouco é ela apenas uma forma bem mais reconfortante e
tranqüilizadora de imaginar os poderes que governam o universo. Esse vínculo oferece-nos uma
substituição positiva dos mitos e imagens que por tanto tempo falsificaram de forma espalhafatosa os princípios mais elementares das relações humanas, valorizando o assassinato e a exploração acima da concepção e da alimentação.
Nos primeiros capítulos deste livro, vimos como nos primórdios de nossa evolução
cultural o princípio feminino personificado pela Deusa era a imagem não só da ressurreição ou
regeneração da morte, transformando-a em vida, mas também a iluminação da consciência
humana através da revelação divina. Como observa o psicanalista junguiano Erich Neumann, nos antigos ritos de mistério a Deusa representava o poder de transformação física da "divindade como a roda da vida em movimento" em sua "totalidade causadora de nascimento e da morte". Mas ela era também o símbolo de transformação espiritual: "A força do centro, a qual, no interior deste círculo, atravessa rumo à consciência e ao conhecimento, à transformação e à iluminação — os objetivos maiores da humanidade, desde tempos imemoriais."

Nova política e nova economia

Hoje em dia, muito se tem dito e escrito sobre a transformação. Futurólogos como Alvin
Toffler escrevem sobre as grandes transformações tecnológicas da "primeira onda", ou agrária,
para a "segunda onda", ou industrial, e agora para a "terceira onda", ou sociedade pós-industrial.49
De fato, temos visto grandes transformações tecnológicas na história registrada. Mas, segundo a
perspectiva da teoria de transformação cultural que vimos desenvolvendo, percebe-se que aquilo
que muitas vezes tem sido descrito como grandes transformações culturais — por exemplo, a
passagem da era clássica para a era cristã e mais recentemente para a era secular ou científica —
tem representado apenas mudanças no interior do sistema androcrático, de um tipo de sociedade
dominadora para outro.
Houve outras bifurcações, pontos de desequilíbrio social, em que uma fundamental
transformação de sistemas poderia ter ocorrido, com o surgimento de novas flutuações ou padrões
de funcionamento mais gilânico. Contudo, estes jamais ultrapassaram os limites do núcleo, o que
indicaria uma mudança da androcracia para a gilania. Utilizando uma analogia familiar, até o
momento o sistema androcrático tem sido como um elástico. Em períodos de forte ressurgimento
gilânico, por exemplo, na época de Jesus, o elástico estendeu-se bastante. Mas no passado, sempre
que as fronteiras ou limites da androcracia eram atingidos, o elástico voltava a seu formato
original. Hoje, pela primeira vez na história registrada, em vez de retroceder, o elástico pode
arrebentar — e nossa evolução cultural poderá finalmente transcender os limites que durante
milênios a contiveram.
Quais seriam, em nosso nível de desenvolvimento tecnológico, as implicações políticas e
econômicas da mudança completa de uma sociedade dominadora para uma sociedade de parceria?
Dispomos de tecnologias que num mundo não mais governado pela Espada poderiam acelerar, e
muito, nossa evolução cultural. De acordo com o relatório anual Despesas Militares e Sociais do
Mundo, de Ruth Sivard, o custo do desenvolvimento de um míssil balístico intercontinental
poderia alimentar cinqüenta milhões de crianças, permitiria a construção de 160 mil escolas e a
abertura de 340 mil centros de saúde. Até mesmo o custo de um único submarino nuclear —
equivalente ao orçamento anual para a educação de 23 países em desenvolvimento em um mundo
no qual 120 milhões de crianças não dispõem de escola para estudar e 11 milhões de bebês
morrem antes de completar um ano de idade — seria suficiente para a abertura de novas
oportunidades para milhões de pessoas hoje condenadas a viver na pobreza e ignorância.50
O que nos falta, os futurólogos não se cansam de enfatizar, é um sistema de governo que
priorize o social, cujos valores predominantes poderiam redirecionar a alocação de recursos,
incluindo nosso avançado know-how tecnológico, para chegar a fins mais elevados.
Willis Harman, que liderou os grandes estudos de futurologia do Instituto de Pesquisa
Stanford, afirma que o necessário — e isso está em evolução — é uma "metamorfose nas
149
premissas culturais básicas e em todos os aspectos dos papéis e instituições sociais". Ele descreve
essa metamorfose como uma nova consciência na qual a competição será equilibrada pela
cooperação, e o individualismo pelo amor. Será o advento de uma "consciência cósmica", "uma
consciência mais elevada", a qual "interligará os interesses próprios com os interesses do próximo e
os das futuras gerações", implicando nada menos do que uma fundamental transformação de
"magnitude verdadeiramente espantosa".51
Da mesma forma, no segundo relatório do Clube de Roma notamos que, a fim de "evitar
grandes catástrofes regionais, e mais tarde globais", devemos desenvolver um novo sistema
mundial "conduzido por um plano-mestre racional para o crescimento orgânico a longo prazo",
unido por "um espírito de verdadeira cooperação global, moldada na livre parceria".52 Este sistema
mundial seria governado por uma nova ética global baseada em uma maior consciência e
identificação com as gerações futuras, bem como com as atuais, exigindo que a cooperação, ao
invés da confrontação, e a harmonia, em vez de conquista, em relação à natureza se tome nosso
ideal normativo.53
Aspecto notável nestas projeções consiste no fato de esses futurólogos não enxergarem a
tecnologia ou a economia como os determinantes básicos de nosso futuro. Eles reconhecem, ao
contrário, que nosso caminho para o futuro será moldado por valores humanos e ajustes sociais;
em outras palavras, que nosso futuro será determinado primordialmente pela forma como nós,
seres humanos, concebermos nossas possibilidades, potenciais e implicações. Segundo o
futurólogo John McHale, "nossos esquemas mentais são o programa básico de ação desse
futuro".54
Contudo, o mais extraordinário reside no fato de hoje em dia muitos futurólogos
afirmarem — praticamente ad nauseam — que devemos deixar para trás os valores rígidos,
orientados para a conquista, tradicionalmente associados à "masculinidade". Não é a necessidade
de um "espírito de verdadeira cooperação global, moldada na livre parceria", "um equilíbrio do
individualismo com o amor", e o objetivo normativo de "harmonia, em vez de conquista da
natureza", a reafirmação de um "ethos mais feminino"? E com que fim se relacionam "mudanças
drásticas na camada normativa" ou uma "metamorfose nas premissas culturais básicas em todos os
aspectos das instituições sociais" senão à substituição de uma sociedade dominadora por uma
sociedade de parceria?
A transformação de uma sociedade dominadora para uma sociedade de parceria
naturalmente traria em seu bojo a mudança em nosso rumo tecnológico: da utilização de
tecnologia avançada na destruição e dominação para seu uso na manutenção e no aprimoramento
da vida humana. Ao mesmo tempo, o desperdício e consumo excessivo que hoje despojam os
necessitados também começariam a diminuir, pois, como têm observado muitos analistas sociais,
no cerne de nosso complexo ocidental de consumo excessivo e desperdício está o fato de sermos
culturalmente obcecados com a aquisição, compra, construção — e desperdício — de coisas, como
um substituto para relacionamentos emocionais satisfatórios que nos são negados pelo estilo de
criação de filhos e pelos valores adultos do atual sistema.55
Acima de tudo, a mudança da androcracia para a gilania seria o começo do fim da política
de dominação e da economia de exploração que em nosso mundo andam de mãos dadas. Pois,
como salientou John Stuart Mill há mais de um século em seu fundamental Princípios de
Economia Política, a forma de distribuição dos recursos econômicos é uma função não de leis
econômicas inexoráveis, mas de escolhas políticas — isto, é, humanas.56
A maioria das pessoas hoje reconhece que na forma atual nem o capitalismo nem o
comunismo oferecem uma saída para nossos crescentes dilemas econômicos e políticos. Enquanto
vigorar a androcracia, é impossível haver um sistema político e econômico justo. Nações
ocidentais como os EUA, onde chapas eleitorais de candidatos são financiadas por poderosos
interesses específicos, ainda não atingiram a democracia política; nações como a URSS,
150
governadas por uma classe administrativa majoritariamente masculina, ainda se encontram
distantes da democracia econômica.
Particularmente, as políticas de dominação e as economias de exploração são, em todas as
androcracias, exemplificadas por uma "economia dual", na qual não são remuneradas, ou, na
melhor das hipóteses, o são com baixos salários, as mulheres cujas atividades produtivas são
sistematicamente exploradas. Como apontou o livro Situação das Mulheres no Mundo— 1985, das
Nações Unidas, em termos globais as mulheres, que representam metade da população, realizam
dois terços do trabalho mundial em termos de número de horas, ganhando um décimo do que os
homens recebem, possuindo um centésimo das propriedades que os homens possuem.57 Além
disso, o trabalho feminino não remunerado — que na África representa a maior parte da
produção de alimentos e que em todo o mundo fornece tantos serviços de saúde gratuitamente
quanto todos os setores formais de saúde combinados — é rotineiramente excluído dos cálculos da
produtividade nacional.58 O resultado, aponta a futuróloga Hazel Henderson, são as projeções
econômicas globais baseadas em "ilusões estatísticas".59
Em A Política da Era Solar, Henderson descreve um futuro econômico positivo no qual os
papéis de homens e mulheres são fundamentalmente reequilibrados, o que significa enfrentar o
fato de que nosso militarismo "masculino" é a "atividade entrópica de seres humanos de maior
energia intensiva, pois converte energia armazenada diretamente em desperdício e destruição, sem
qualquer preenchimento útil intermediário das necessidades humanas básicas". Seguindo-se ao
atual período "marcado pelo declínio dos sistemas de patriarcado", Henderson não prevê uma
realidade econômica nem ecológica, governada pêlos valores "masculinizados" hoje
"profundamente associados à identidade masculina".60
Da mesma forma, em A Alternativa Sensata, o escritor inglês James Robertson estabelece o
contraste entre o que denomina futuro "hiperexpansionista" ou HE ("ele", em inglês), e um
futuro "sensato, humano, ecológico", ou SHE ("ela").61 E na Alemanha o professor Joseph Huber
descreve seu cenário econômico negativo para o futuro como "patriarcal". Em contraste, em seu
cenário positivo, "os sexos estão em posição de igualdade social. Homens e mulheres
compartilham funções remuneradas, bem como as tarefas domésticas, a criação dos filhos e outras
atividades sociais".62
O tema central unificando estas e outras análises econômicas, embora de fundamental
importância para nosso futuro, ainda permanece em grande parte desarticulado, qual seja, o de
que sistemas econômicos tradicionais, sejam eles capitalistas ou comunistas, são construídos sobre
o que, tomando emprestado o termo da análise marxista, pode ser denominado a "alienação do
trabalho responsável".63 Com a integração desse trabalho responsável — o trabalho mantenedor da
vida, de alimentação, auxílio e amor ao próximo — na economia, testemunharemos uma
fundamental transformação econômica e política.64 Gradativamente, com a integração da metade
feminina da humanidade e os valores e objetivos rotulados pela androcracia como femininos nos
mecanismos-guia da sociedade, um sistema econômica e politicamente saudável e equilibrado
surgirá. Em seguida, unificada na família global prefigurada pelos movimentos feminista, pacifista,
ecologista e do potencial humano e outros, nossa espécie passará a vivenciar todo o potencial de
sua evolução.

Transformação

O surgimento de um novo mundo de renascimento psicológico e social implicará
mudanças impossíveis de prever, ou mesmo de imaginar. De fato, em razão dos muitos fracassos
que se seguiram às antigas esperanças de melhoria social, as projeções de um futuro positivo
omitem o ceticismo. No entanto, sabemos que mudanças estruturais implicam também mudanças funcionais. Assim como não se pode ficar sentado em um canto de uma sala redonda, em nossa mudança de uma sociedade dominadora para uma sociedade de parceria, nossas antigas formas de pensar, sentir e agir serão gradativamente transformadas.
Ao longo de milênios da história registrada, o espírito humano esteve aprisionado pelos grilhões da androcracia. Nossas mentes foram paralisadas, e nossos corações, insensibilizados. No
entanto, nossa luta pela verdade, beleza e justiça jamais se extinguiu. Assim que rompermoestes
grilhões, da mesma forma nossas mentes, corações e mãos estarão livres, e nossa imaginação será criativa. Para mim, uma das imagens mais evocativas da transformação da androcracia para a gilania é a da lagarta metamorfoseada em borboleta. Essa imagem parece-me particularmente
adequada para expressar a visão da humanidade elevando-se às alturas que for capaz de atingir,
como a borboleta é um antigo símbolo de regeneração, uma epifania dos poderes transformadores atribuídos à Deusa.
Outros dois livros, Breaking Free e Emergence investigarão esta transformação em
profundidade. Eles exporão um projeto novo de realização social — não para uma utopia (a qual
literalmente significa "nenhum lugar" em grego), mas para uma pragmatopia, cenário de realização em um futuro de parceria. Embora seja impossível expor em poucas páginas o que será desenvolvido em dois livros, gostaria de concluir este capítulo com o esboço em linhas gerais de algumas das mudanças que prevejo na retomada de nossa evolução cultural interrompida. A mudança mais dramática na passagem de um universo dominador para um universo de
parceria se dará quando nós, nossos filhos e netos, voltarmos a saber o significado de viver livre do temor de uma guerra. Em um mundo livre da norma que estabelece que, para ser "masculino" os homens precisam dominar, junto com a ascensão da condição das mulheres e prioridades sociais mais "femininas", o perigo de uma aniquilação nuclear diminuirá gradativamente. Ao mesmo tempo, com a igualdade feminina de oportunidades sociais e econômicas — de modo que a natalidade possa equilibrar-se mais com nossas fontes —, a "necessidade" malthusiana de fome, enfermidades e guerras decrescerão progressivamente. Como tais problemas em grande medida relacionam-se também com a explosão demográfica, com a "conquista da natureza pelo homem" e com o fato de a "preservação ambiental" não ser nas androcracias uma prioridade política, nossos problemas de poluição, degradação e esgotamento ambiental da mesma forma devem começar a regredir nos anos de transformação, assim como suas conseqüências de escassez de energia e outros recursos naturais e de problemas de saúde devido à poluição química.
Como as mulheres não mais serão sistematicamente excluídas do auxílio financeiro, da
concessão de terras e da especialização moderna, os programas de desenvolvimento econômico do Terceiro Mundo para a implementação da educação e tecnologia e elevação dos padrões de vida se tomarão bem mais eficazes. Haverá também menor incompetência econômica e sofrimento humano, terrível fardo para milhões de pessoas, tanto nos países desenvolvidos quanto nos países em desenvolvimento. Não sendo as mulheres tratadas como animais de procriação e bestas de carga, obtendo maior acesso aos órgãos de saúde, educação e à participação política, não só a metade feminina da humanidade, mas a humanidade em geral se beneficiará.
Aliada a medidas mais racionais visando à redução bem-sucedida da pobreza e da fome dos inumeráveis pobres em todo o mundo — mulheres e crianças —, a crescente consciência de nossa ligação com todos os membros de nossa espécie deverá gradualmente estreitar o abismo entre nações ricas e pobres. De fato, quando bilhões de dólares e horas de trabalho forem recanalizados
das tecnologias de destruição para as tecnologias de sustentação e implementação da vida, a pobreza e a fome humanas aos poucos se tomarão lembranças de um brutal passado androcrático.
As mudanças no relacionamento mulher-homem do atual elevado grau de desconfiança e
recriminação para a maior abertura e confiança se refletirão em nossas famílias e comunidades.
Haverá também repercussões positivas em nossas políticas nacionais e internacionais.
Gradativamente testemunharemos uma diminuição na aparentemente infinita seqüência de
problemas diários que hoje nos atormentam, desde a doença mental, o suicídio e o divórcio até o
espancamento de esposas e filhos, o vandalismo, o assassinato e o terrorismo internacional. De
acordo com a pesquisa a ser detalhada no segundo livro de nosso relatório, esses tipos de
problemas se originam em grande medida, do elevado grau de tensão interpessoal inerente à
organização social de supremacia masculina e de modos de criação de filhos com base na
dominação e na força. Assim, com o movimento rumo a relações mais equilibradas e igualitárias
entre mulheres e homens e a reafirmação de comportamento mais humano, moderado e carinhoso
para com crianças de ambos os sexos, poderemos esperar, realisticamente, mudanças psíquicas
fundamentais, que, em espaço relativamente curto, por sua vez acelerarão exponencialmente o
ritmo da transformação.
O mundo, como será quando mulheres e homens viverem em integral parceria, ainda terá
famílias, escolas, governos e outras instituições sociais. Mas, à semelhança das instituições que já
estão surgindo de famílias igualitárias e da rede de ação social, as estruturas sociais do futuro se
basearão mais na união do que na supremacia. Em vez de exigirem indivíduos que se enquadrem
nas hierarquias piramidais, estas instituições serão heterárquicas, permitindo a ambos flexibilidade na ação e tomada de decisões. Conseqüentemente, os papéis de mulheres e homens serão bem menos rígidos, possibilitando a toda a espécie humana o máximo de flexibilidade evolutiva. Mantendo-se as atuais tendências, muitas de nossas novas instituições também terão campos de ação mais amplos, transcendendo os limites nacionais. Com a consciência de nossa
integração com o outro e com o meio ambiente, poderemos esperar assistir ao desaparecimento da antiga nação-estado como entidade política ensimesmada. No entanto, em vez de mais uniformidade e conformismo, projeção lógica do ponto de vista dominante, haverá maior individualidade e diversidade. Unidades sociais menores estarão ligadas a matrizes ou redes para uma variedade de fins comuns, que irão do cultivo e colheita de oceanos e exploração espacial à divisão do conhecimento e o avanço das artes. Haverá também outras ousadias globais, ainda
imprevisíveis, para o desenvolvimento de formas mais justas e eficientes de utilização de todos os nossos recursos naturais e humanos, bem como novas invenções materiais e sociais que aindanão podemos antever nesta etapa de nosso desenvolvimento. Com a mudança global para uma sociedade de parceria, haverá muitas evoluções tecnológicas, além de adaptações das técnicas existentes a novas exigências sociais. Algumas dessas, como previram Schumacher e outros, constituíram tecnologias melhores e mais elaboradas nas áreas das artes — por exemplo, uma volta ao orgulho da criatividade e individualidade na tecelagem, carpintaria, cerâmica e outras artes aplicadas. Mas, ao mesmo tempo, como o objetivoé libertar a humanidade do trabalho servil e enfadonho semelhante ao dos insetos, isto não significará um retrocesso a tecnologias mais trabalhosas em todos os campos. Ao contrário,possibilitando-nos tempo e energia para a realização de outros potenciais criativos, poderemos esperar que a mecanização e automação representem um papel ainda mais fundamental na vida. E os métodos de pequena e larga escala de produção serão utilizados de forma a estimular, na verdade exigir, a participação do trabalhador, em vez de, como é exigido em um sistema
dominador, transformar os próprios operários em máquinas ou autômatos. O desenvolvimento de métodos de controle da natalidade mais seguros e confiáveis serão a prioridade máxima da tecnologia. Veremos também a realização de número muito maior de pesquisas para a compreensão e desaceleraçâo do processo de envelhecimento, as quais irão das técnicas que já começam a surgir de substituição de partes do corpo esgotadas até métodos de
regeneração das células do corpo. Também poderemos testemunhar a perfeição da vida criada em laboratório. Mas, em vez de substituir as mulheres, ou convertê-las em incubadoras para células desenvolvidas artificialmente, estas novas técnicas de reprodução serão avaliadas com cuidado tanto por homens quanto mulheres, a fim de assegurar sua utilidade na realização do potencial integral de ambos os sexos. Visto que as tecnologias de destruição não mais consumiriam e destruiriam vastas porções de nosso recursos naturais e humanos, empreendimentos ainda não sonhados (e atualmente impossíveis de serem imaginados) serão economicamente viáveis.Como resultado, teremos a economia próspera prevista por nossa pré-história gilânica. Não só ariqueza material será compartilhada mais igualitariamente, como também esta ordem econômica de acúmulo de mais e mais propriedades como forma de proteção e controle em relação aos outros será considerada o que de fato é: uma forma de doença ou aberração. Haverá em todo este processo diversos estágios econômicos. primeiro, já em surgimento, será o que se denomina economia composta, combinando alguns dos melhores elementos do capitalismo, c comunismo e — no sentido de diversas unidades cooperativas descentralizadas de produção e distribuição — também do anarquismo. O conceito socialista de que os seres humanos têm direitos básicos não políticos mas também econômicos sem dúvida será primordial em uma economia gilânica baseada na cooperação e não na dominação. Mas, quando da substituição de uma sociedade dominadora por uma sociedade de parceria, poderemos esperar novas invenções econômicas. No âmago desta nova ordem econômica estará a substituição da presente "economia dual" malograda, na qual o setor econômico de supremacia masculina recompensado com dinheiro, status e poder em seus estágios industriais, como documenta Henderson, "canibaliza os sistemas sociais e ecológicos". Ao contrário, podemos esperar que a economia não-monetizada "informal" — de produção e manutenção doméstica, serviços comunitários voluntários e familiares e todasas atividades de cooperação que hoje permitem que "atividades exageradamente remuneradas e competitivas pareçam bem-sucedidas" — será adequadamente valorizada e recompensada, o que fornecerá a base hoje ausente para um sistema econômico no qual a solicitude para com os outros não é só "da boca para fora", mas será a atividade humana mais recompensada e, conseqüentemente, mais valorizada. Práticas tais como a mutilação sexual feminina, o espancamento de esposas ou as formas menos brutais, através das quais a androcracia vem mantendo as mulheres "no seu lugar", naturalmente serão consideradas não como tradições consagradas mas como o que de fato são — crimes gerados pela desumanidade do homem para com a mulher. E quanto àdesumanidadedo homem para com o homem, como a violência masculina não mais será glorificada pelos épicos e mitos "heróicos", as chamadas virtudes masculinas de dominação e conquista também serão vistas como o que são —aberrações brutais e bárbaras de uma espécie que se voltou contra si mesma. Através da reafirmação e celebração dos mistérios transformadores simbolizados pelo Cálice, novos mitos voltarão a despertar em nós o sentido de gratidão perdido e a celebração à vida tão evidentes nos vestígios artísticos do neolítico e da Creta minóica. Restabelecendo a conexão entre nós e nossas raízes psíquicas mais inocentes — antes que a guerra, a hierarquia e a dominação masculina se tornassem nossas regras vigentes —, esta mitologia não nos levará psiquicamente de volta ao universo da infância tecnológica de nossa espécie. Ao contrário, interligando nossa herança antiga de mitos e símbolos gilânicos a nossas idéias modernas, nos aproximaremos de um mundo bem mais racional, no verdadeiro sentido da palavra: um mundo animado e guiado pela consciência de que somos inextricavelmente ligados, ecológica e socialmente, uns aos outros e a nosso meio ambiente. Junto com a celebração da vida, ocorrerá a celebração do amor, incluindo o amor sexual entre mulheres e homens. Os elos sexuais, por meio de algo semelhante ao que hoje denominamos casamento, com certeza permanecerão. Mas o objetivo fundamental deste elo será o companheirismo, o prazer sexual e o amor. O fato de ter filhos não se relacionará mais com a transmissão de nomes e posses masculinos. E outras formas de afeto, não só a de casais heterossexuais, serão inteiramente aceitas.
Todas as instituições, não apenas as destinadas especificamente à socialização de crianças, terão como objetivo a realização de nossos grandes potenciais humanos. Só um mundo no qual a qualidade, em vez da quantidade de vida humana, predomine pode nutrir tal objetivo. Por isso, como previu Margaret Mead, as crianças serão poucas e, assim, altamente valorizadas. Os anos de formação da infância serão a preocupação ativa tanto de homens quanto de mulheres. Não só os pais biológicos, mas muitos outros adultos, assumirão variadas responsabilidades em relação ao mais precioso de todos os produtos sociais: a criança. A nutrição racional, bem como exercícios mentais e físicos, tais como formas mais avançadas de ioga e meditação, serão considerados pré-requisitos elementares para corpos e mentes saudáveis. E,em vez de destinar-se a socializar a criança, de forma a ajustá-la a seu lugar em um mundo de supremacias, o aprendizado será — como já começa a ser — um processo de toda a existência no sentido de maximização da flexibilidade e criatividade em todos os estágios da vida. Neste mundo, onde a realização de nossos potenciais evolutivos mais elevados — nossa maior liberdade através do conhecimento e sabedoria — guiará a política social, o enfoque básico da pesquisa será a prevenção de doenças físicas e sociais, tanto do corpo quanto da mente. Além disso, o poder de nossas mentes, ainda não utilizado, mas cada vez mais reconhecido, será pesquisado e cultivado extensamente. Como resultado, os potenciais mentais e físicos ainda não sonhados serão descobertos e desenvolvidos.78 Acima de tudo, este universo gilânico será um mundo onde as mentes das crianças — tanto meninas quanto meninos — não mais serão restringidas. Este será um mundo onde as
limitações e temores não mais serão sistematicamente ensinados através de mitos sobre como os seres humanos são inevitavelmente maus e perversos. Neste mundo, as crianças não aprenderão épicos sobre homens glorificados por sua violência, ou contos de fadas sobre crianças que se perdem em florestas apavorantes onde as mulheres são bruxas malévolas. Elas aprenderão novos mitos, épicos e histórias nos quais os seres humanos são bons; os homens são pacíficos; e o poder de criatividade e amor — simbolizados pelo Cálice sagrado, o recipiente sagrado de vida — é o princípio governador. Pois neste mundo gilânico, nosso impulso em busca de justiça, igualdade e liberdade, nossa ânsia de conhecimento e iluminação espiritual e nossa sede de amor e beleza finalmente serão libertados. E, após o sangrento desvio da história androcrática, tanto mulheres quanto homens terminarão por descobrir o que pode significar ser humano.

IN O Cálice e a Espada

Gaia Lil;

Este livre é realmente muito importante pois nos traz não só uma nova visão do passado como a do futuro (que esta descrita acima)


Quanto aos termos usados pela autora:

Androcratico - Equivale ao termo patriarcal, centrado no pai e na dominação masculina da alma de mulheres e homens

gilânico- sistema igualitaria entre homens e mulheres originado da era préhistorica e pré patriarcal, aonde a sociedade matristica e matrilinear, cultuava a Grande Mãe e seu Filho Divino.


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