"E aqueles que pensam em Me procurar, saibam que a vossa busca e vosso anseio devem beneficiar-vos apenas se vós souberdes o Mistério; se o que vós procurardes, vós não achardes dentro de vós mesmos, então nunca encontrarão fora. Pois eu tenho estado convosco desde o Início e Eu Sou Aquela que é alcançada ao final do desejo"


quarta-feira, 11 de maio de 2011

SENHORA DAS ÁGUAS QUE CORREM

Divindades da chuva


A chuva é um símbolo universal de fecundidade e fertilidade, doadora e sustentadora da vida animal, vegetal e humana, um verdadeiro fluido divino. Na maioria das antigas culturas e tradições nativas o Principio Feminino era representado pela água, regida pela Lua.
A fonte da vida era simbolizada pelo oceano primordial que cercava a terra, assim como o liquido amniótico envolvia o feto. Rios, correntes, fontes, lagos, mares eram associados à “Senhora das águas que correm”, um termo que revelava a natureza fluida e mutável da Deusa. No período neolítico a Deusa era venerada como a fonte de água, que sustentava a vida e caia do céu em forma de chuva ou brotava da terra como fonte, rio ou lago.

Assim como a constelação da Via Láctea representava a energia nutridora nascendo dos seios da Mãe Celeste, a Mãe Terra era cercada pela água dos mares, que, ao evaporar e cair como chuva, a fertilizava e sustentava a vida de todos os seres. A água era o poder gerador, fertilizador e nutridor da Grande Mãe, que ela oferecia ou guardava. Vasilhas de leite simbolizavam a própria Deusa, como comprovam as estatuetas das deusas da Mesopotâmia segurando o vaso da vida ou o hieróglifo da Deusa egípcia celeste Nut sendo um jarro. Inúmeros vasos com seios e decorados com linhas paralelas, ondulantes e em ziguezague, espirais ou semelhantes às letras V e M, que eram os símbolos da água, encontrados na Creta e Grécia personificam as Deusas Celestes, cujo leite nutridor caia dos seus seios em forma de chuva. Os jarros representavam o ventre da Deusa, de onde fluía a água doadora da vida como leite ou chuva. Leite, água, chuva e orvalho eram atributos femininos e lunares, fertilizadores e nutridores. Na antiga Suméria o céu era a própria Deusa e as nuvens carregadas de chuva seus seios plenos de vida. Inanna era reverenciada como Rainha do céu e regente da chuva, que ao cair sobre a terra fazia as sementes germinarem. Um lindo verso de um hino dedicado a Ela descreve assim as dádivas de Inanna: “Eu piso sobre as nuvens e a chuva cai, eu piso sobre a terra e as sementes se abrem e florescem”. Reverenciadas como forças poderosas - que podiam ser benéficas ou não -, a água e a chuva eram associadas a um sistema complexo de rituais e magias, para invocar e direcionar seu fluxo, principalmente nas regiões áridas. Nas comunidades primitivas a pessoa mais importante era o xamã encarregado dos rituais de chuva; em todo o mundo antigo e entre etnias diversas e radicadas em lugares diferentes, eram constantes os rituais dedicados à chuva, para que ela caísse sobre a terra na época e medida certa, tornando-a fértil. Filha das nuvens e das tempestades, a chuva era também relacionada ao fogo, além da água.
Na Índia, o deus Indra era a manifestação divina do raio que dava origem à chuva e tornava férteis os campos, as mulheres e os animais. As mulheres grávidas na Índia são comparadas à chuva, como nascentes auspiciosas plenas de toda a riqueza e abundância. No Islão eram os anjos enviados por Deus que transportavam as gotas de chuva, uma ideia que também existe na Índia, onde os seres sutis se deslocam para a terra nas gotas de chuva. No Oriente, tanto na China como na Índia, considerava-se que a chuva era uma manifestação do céu, o princípio ativo, masculino e fecundante, mas ela tinha uma natureza lunar, Yin, enquanto o orvalho, também lunar, era Yang.

Na Grécia, a lenda de Dánae relata como a linda donzela tinha sido encerrada pelo pai num local subterrâneo blindado de bronze para evitar que engravidasse. Mesmo assim ela foi fecundada por Zeus, que entrou no recinto transformado numa chuva de ouro, pingando por uma fenda no teto. A conotação sexual da chuva como o sémen dos deuses também é encontrada entre os índios da América Central, que consideram a chuva a semente do deus do trovão. Entre os Astecas, o deus da chuva regia os raios e trovões. Os Incas acreditavam que a chuva era retirada pelo deus das trovoadas da Via Láctea, vista como um grande rio no céu.
Para muitas civilizações centradas na agricultura, a chuva equivalia ao poder criador com o sangue, o que justificava os muitos rituais de sacrifício de animais e mesmo de seres humanos, cujo objetivo era a fecundação da terra. Para nossos antepassados, eram os deuses que controlavam a quantidade de chuva, e as lágrimas eram frequentemente associados aos deuses da chuva, talvez uma consequência dos sacrifícios de crianças. Na Bolívia, em Tiahuanaco, tem um antigo monumento chamado “Porta do Sol”: um arco, sobre qual tem a figura do deus celeste com a cabeça cercada de raios do sol; da lança na sua mão ele projeta raios, enquanto dos seus olhos correm lágrimas que representam a chuva. "Lágrimas do céu" é um tema encontrado também no sudeste dos Estados Unidos, onde o culto do sol praticado por algumas tribos inclui um conjunto de emblemas, rituais e símbolos religiosos como conchas, esculturas em pedra, jarros de cerâmica e outros itens gravados com rostos com olhos chorando. A chuva combinada com trovões inspirou mitos e histórias impressionantes, temida como uma combinação celeste enviada pelos deuses para punir os pecados como mentira, incesto, roubo, maus-tratos de animais, desperdício de alimentos ou não honrar juramentos. Seca, fome e destruição de lavouras pelas enchentes ou granizo representavam a vingança dos deuses. Para os antigos hebreus a chuva era a benção divina como retribuição pela obediência humana às leis de Deus. No Gênesis menciona-se a separação das águas, o reservatório da chuva sendo o tesouro divino cujas chaves eram guardadas por Deus.

As secas eram vistas como punição pelos pecados da volúpia, cobiça, avareza, maldade, mentiras, roubos e pelas práticas pagãs. No Antigo Testamento, esta punição foi realizada em grande escala, Deus abriu as forças do céu para chover sobre os ímpios por quarenta dias e quarenta noites. Em um mito mexicano a Deusa Chalchihuitlicue, da “saia de jade”, foi responsável pelo Grande Dilúvio que destruiu o mundo na última era devido ao desequilíbrio humano. Porém ela decidiu salvar alguns escolhidos, construindo uma ponte que ligava o quarto mundo ao quinto para que pudessem passar e depois enviou chuvas torrenciais afogando todos os que tinham cometido atos de maldade e violência contra seus semelhantes ou os seres da natureza. Os povos que a honravam faziam procissões para seus templos, pedindo chuvas suficientes para fertilizar a terra, mas sem inundá-la. Uma reminiscência das antigas celebrações das Deusas astecas da chuva existe no México na comemoração da Virgem de Zapopan.

Na Guatemala a cerimônia da chuva era celebrada com danças de mulheres segurando moringas cheias de água, batendo tambores e sacudindo chocalhos, enqu
anto invocavam as chuvas purificadoras e fertilizadoras. Os índios pueblo realizam até hoje cerimônias para invocar o Povo das Nuvens e atrair a chuva, enquanto os hopis fazem elaborados desenhos com areias coloridas representando nuvens e as danças de alegria pela chuva. Os dançarinos apaches se vestem com trajes que imitam os animais sagrados, como salamandra, sapo, tartaruga, peixe e entoam canções e orações para propiciar a chuva. Os indios chaco acreditam que a chuva é um espirito montado em um cavalo, enquanto outras tribos norteamericanas acreditam que jogar certa espécie de aranha na água, ou molhar a cauda do búfalo e salpicar água na terra, eram práticas para atrair a chuva. Os aimaras de Peru seguem até hoje um ritual especial na seca prolongada. O xamã da tribo vai até o lago Titicaca e enche várias vasilhas com água, sapos e plantas aquáticas, deixando oferendas para os espíritos do lugar. Homens em balsas o acompanham tocando flautas e tambores e orando para os espíritos das montanhas. Uma procissão de homens e mulheres conduzida pelo xamã sobe a montanha Atoja e deixa as vasilhas com água e sapos em dois altares em pleno sol, orando para o Pai e a Mãe da montanha para enviarem a chuva. Com o calor solar, a água evapora e os sapos gritam em desespero, lamento que compadece os espíritos da montanha e para salvarem os sapos, eles enviam a chuva refrescante. No Japão, no primeiro dia do festival dos mortos, milhares de pequenos barcos são preenchidos com comidas e mensagens para os parentes falecidos e os ancestrais. Pede-se aos espíritos que entrem nos barcos, que são soltos na água passando sob um símbolo shintoista em forma de arco, representando a Grande Mãe, o portal para entrar e sair da vida, o santuário das almas errantes. Na China a deusa Xiumu, a "Mãe da Águas" era homenageada nas fontes d'água na época das chuvas e inundações, pedindo-lhe que as suas dádivas viessem na medida certa . Em Hong Kong comemorava-se a Deusa d'água Tien Hou, Rainha do céu, regente do oceano e da estrela do norte, que protegia os marinheiros e pescadores, orientando os ventos e flutuando no meio das nuvens para descobrir e salvar aqueles que corriam perigo. Os hindus celebravam Ranu Mbai, a regente da chuva, fertilidade e primavera; as mulheres estéreis a reverenciavam levando vasilhas com água de chuva para as suas estátuas, molhando-as e pedindo que fertilizasse e abençoasse seus ventres com o dom de gerar a vida. Na Austrália os aborígenes honravam Wonambi, a Deusa da chuva e fertilidade, vista como a serpente guardiã do arcoíris; na África do Sul comemorava-se a Deusa Mbaba Mwana Waresa, guardiã da chuva e do arco-íris. Mokosh era uma antiga Deusa eslava da terra e da água, cujo culto sobreviveu até o século XVI na Sérvia; ela regia as águas do céu e da terra, a umidade, a fertilidade, os animais aquáticos e a pesca. Era simbolizada por pedras com formas de seios e acreditava-se que ao sacudi-las, o leite nelas contido se manifestava como chuva. Na época de neca, as pessoas iam em peregrinação para os rochedos a ela consagrados pedindo saúde, sorte e prosperidade. No folclore russo seu nome sobreviveu como Mokushka, espíritos femininos que sobrevoavam as casas, protegendo ou assombrando e tecendo durante a noite em teares invisíveis. Na antiga Grécia e Roma os regentes da chuva eram Zeus e Júpiter, cujos sacerdotes sacudiam galhos de carvalho - sua árvore sagrada - jogando também pequenas imagens dos deuses nos rios para atrair a chuva. Nos países anglo-saxões os druidas lançavam jatos de água sobre moças nuas ou sobre bonecas vestidas com folhas, prática ainda existente em alguns lugares remotos da Europa. Havia procissões conduzidas pelos druidas para certas fontes sagradas ou locais mágicos, onde eles batiam na superfície da água ou jogavam água sobre pedras especiais. A igreja cristã apoderou-se destas tradições, os padres substituíram os druidas e continuaram as procissões levando imagens de santos; mesmo cristianizadas, com o passar do tempo, estas práticas foram consideradas pagãs e proibidas.

Na Rússia celebravam-se as Russalkas, espíritos femininos da água, cuja dança noturna proporcionava o crescimento e a maturação das plantas. Elas se apresentavam como lindas moças vestidas com roupagens de folhas verdes e serpentes nos cabelos, trazendo as chuvas para o campo. No final do verão elas se escondiam no fundo dos rios onde permaneciam até a primavera seguinte e recebiam oferendas de pão e sal. Com a cristianização, as Russalkas foram sincretizadas com a Virgem Maria resultando assim a figura de Mari-Russalka, protetora das águas e dos salgueiros.
Na Romênia, nos períodos de seca, as moças das aldeias se cobriam com folhas e galhos verdes e dançavam nas ruas pedindo chuva, enquanto a multidão jogava sobre elas baldes com água e recitava orações para os espíritos das águas. Na Índia, monges budistas atraem a chuva vertendo água em pequenos orifícios feitos no chão dos templos; as mulheres amarram um sapo a uma peneira giratória, cantam pedindo chuva e despejam água sobre o sapo. A crença no poder da serpente trazer a chuva é revelada pelos dois grandes festivais hindus na estação chuvosa, quando imagens de serpentes são banhadas e orações de gratidão entoadas. Vários animais são vistos como guardiões ou totens das divindades da chuva como sapos, serpentes, répteis. Em certos lugares, determinadas pedras eram honradas como intermediárias para pedir a chuva ao serem imploradas, molhadas ou submersas. Se a chuva fosse forte demais, elas eram colocadas perto do fogo para secarem. O comportamento de diversos animais podia indicar a chuva: gritos de pássaros, procissão de formigas, voo baixo de corvos, gansos, andorinhas, vagalumes, enquanto o agravamento de certas dores ou doenças humanas também servia como alerta. Atualmente a chuva perdeu seu simbolismo e significado sagrado e religioso. Para muitos de nós, ela tornou-se um inconveniente e uma preocupação em relação às nossas atividades corriqueiras, sem a respeitarmos como uma força divina. Não nos preocupamos com as consequências de muita ou pouca chuva, a não ser que se tornem manchetes de jornais ou noticiários repetidos até exaustão pela TV. Mesmo assim, depois de passar o impacto da destruição causada pelas enchentes, deslizamentos de terra ou a perda das colheitas devidas à seca, voltamos para o nosso ritmo cotidiano e reclamamos quando aumentam os preços de legumes ou de frutas.

Nesta época, quando a Mãe Natureza nos alerta sobre os nossos erros ao agredir, poluir e explorar os recursos da terra até a sua exaustão, não percebemos que os sinais que chegam a nós, as “lágrimas do céu”, são verdadeiras mensagens, para evitarmos perpetuar os mesmos comportamentos de cobiça, violência e devastação. Somente com uma mudança radical de valores e atitudes, no nível individual, coletivo e global ,poderemos evitar que novas catástrofes naturais nos mostrem o quanto erramos e abusamos da complacência das divindades perante nossa falta de responsabilidade em relação ao Todo.

Mirella Faur
IN: JORNAL DEUSA VIVA

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