"E aqueles que pensam em Me procurar, saibam que a vossa busca e vosso anseio devem beneficiar-vos apenas se vós souberdes o Mistério; se o que vós procurardes, vós não achardes dentro de vós mesmos, então nunca encontrarão fora. Pois eu tenho estado convosco desde o Início e Eu Sou Aquela que é alcançada ao final do desejo"


quinta-feira, 11 de novembro de 2010

80 ANOS DA MÃE DO FEMINISMO NO BRASIL


Do matricentrismo à androginia
Em busca do homem-mãe

Ano Zero – maio de 1992

Por Pedro Camargo, colaborou: Alexandre Mansur

Para Rose Marie Muraro, cabe à mulher o papel principal no
projeto de impedir a destruição do planeta e estancar a pilhagem da
riqueza pública pelas elites do mundo. Ela sustenta que a alma
feminina possui o sentido de partilha, enquanto o poder,
masculinizado, deixou de ser serviço e tornou-se privilégio
. Mas a
ascensão da androginia na Nova Era inaugurará o relacionamento
real entre homem e mulher, condição básica para a geração de um
novo equilíbrio. Em entrevista especial a ANO ZERO, Rose Marie
comenta estas e outras idéias expostas em seu novo livro, A
mulher no Terceiro Milênio.
ANO ZERO — Em seu novo livro, você observa que a sociedade
patriarcal é recente. Seria possível resumir isso?
Rose Marie Muraro — Procurei mostrar cientificamente que
durante quase dois milhões de anos o poder era considerado um
serviço e não um privilégio. A solidariedade e a partilha dos
pequenos grupos - que dependiam uns dos outros para sobreviver
- geravam uma psique isenta de possessividade, de não
propriedade. Nessa época o homem ainda não saía para a caça e
por isso a mulher era socialmente mais importante, considerada
sagrada porque reproduzia a vida. A propriedade fundamental era a
reprodução. Os homens pensavam que elas ficavam grávidas dos
deuses. Já no século XX foi descoberta nas ilhas Trobriand uma
civilização que ainda vivia esse sistema. Malinowsky conta que
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deixou um habitante de Trobriand danado da vida ao tentar
convencê-lo de que a gravidez durava nove meses. O sujeito disse
que viajara por dois anos e, ao voltar, sua mulher o presenteara
com uma linda criança...
AZ — Ou seja, naqueles tempos a força física ainda não era
instrumento de poder.
RMM — Sim. Depois, a propriedade mais importante passou a ser
a força física. Era necessário caçar animais pesados. Nesse novo
período era como se o homem procurasse se vingar da sua relativa
inferioridade diante da mulher. No patriarcado, quem se sente
inferior é ela. As vezes eu falo que o culpado disso é o Gênesis. Na
Bíblia está escrito que Eva foi criada a partir de uma costela de
Adão. O Gênesis, portanto fez o homem parir uma mulher, para
santificá-lo e desqualificar o parto. Uma metonímia no sentido
lacaniano do termo, um mecanismo de defesa muito comum.
AZ — E possível localizar cronologicamente essa mudança de
comportamento, do sistema de partilha para a sociedade
patriarcal?
RMM — Foi há cerca de 10 mil anos, quando os homens tiveram
de brigar por comida e desenvolveram a possessividade, assim
como a divisão entre cabeça e corpo, mente e emoção. Dessas
sociedades de caça surgiu o patriarcado. Então, enquanto a
agressividade tem apenas 10 mil anos, a solidariedade tem quase
dois milhões. Nós, mulheres conservamos estes princípios
arcaicos e todo mundo dizia, inclusive Freud, que isso era nossa
inferioridade. Tanto que no mundo competitivo do trabalho essas
qualidades não são valorizadas. Ser solidário, hoje, tornou-se um
diploma de fracasso.
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AZ — Quer dizer que o matriarcado aconteceu antes do período
da caça?
RMM — O matricentrismo, porque esse termo matriarcado é coisa
dos homens, que são fantasiosos. Só teria existido se a mulher
houvesse usado o poder em proveito próprio. No tempo da Grande
Deusa, ninguém queria tê-lo. Havia um rodízio de lideranças. Não
será possível revertera processo atual de destruição do planeta
enquanto o poder não voltar a ser considerado um serviço e o
Estado não voltar a ser composto por cidadãos. As elites de todos
os países estão rapinando o Estado para botar o dinheiro no
próprio bolso ou na Suíça, que lava mais branco. Você sabe que há
três trilhões de dólares girando no mundo dentro do sistema
financeiro sem qualquer aplicação prática? E tanta gente morrendo
de fome...
AZ — Qual a fonte dessa estatística?
RMM — Maria da Conceição Tavares, que entende muito bem do
riscado.
AZ— E essa coisa da Suíça lavar mais branco?
RMM — Isso é outra história. A Suíça era um país que só
fabricava relógios. Então, quando surgiu o dinheiro sujo do século
XX, criaram bancos com contas sigilosas. Todo o dinheiro foi para
lá. Eles ficaram riquíssimos!
AZ — E os três trilhões de dólares?
RMM — Estão girando em países como Japão, Alemanha, Estados
Unidos e Suíça, sendo aplicados e gerando filhotes dissociados da
realidade. No Brasil, a década economicamente perdida de 80 a 90
ocorreu porque o pessoal colocava o dinheiro no over.
AZ — Muitos indicadores econômicos não têm relação direta com
o bem-estar social. É a isso que você está se referindo?
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RMM—Exatamente. É a maneira feminina de reverter esse quadro
é botar conteúdo humano nos agregados matemáticos que são
frios e formais. Nos números você não vê miséria, doença ou
morte. De um modo geral, a ciência é aética. Mas se fizermos com
que ela se baseie na partilha e não na divisão, poderemos fugir ao
modelo usado hoje, de Erich Von Newmann.
AZ — O que propõe o Newmann?
RMM — Ele diz que, se um ganha, outro perde, não admitindo
empate. Assim, o poder jamais será um serviço que vem da
partilha. O que estamos falando pode ser chamado de eco
feminismo. O feminismo estaria hoje obsoleto se tudo que
dissemos nos anos 70 não estivesse sendo agora uma trágica
realidade.
AZ — Voltando ao assunto das ilhas Trobiand, foi constatado que
naquela sociedade as crianças não eram consideradas filhos deste
ou daquele casal, mas pertenciam a toda a comunidade. A idéia de
menor abandonado seria inconcebível numa sociedade solidária?
RMM — Sim, nas tribos mais primitivas a criança era cuidada por
toda a aldeia. Na favela de hoje ocorre algo parecido. Por exemplo,
há um ditado que diz: “mãe é quem está perto”. Porque a mãe
natural, geralmente uma empregada doméstica, vai trabalhar, deixa
a criança lá e todos cuidam dela. Menino de rua é um
desvirtuamento disso. Hoje, se a mãe se afasta, a criança na rua
será marginalizada, acabará aderindo ao “cada um por si e Deus
por ninguém”. É matar ou morrer.
AZ — A sociedade de partilha é necessariamente socialista?
RMM — O verdadeira socialismo é a sociedade de partilha. Foi o
que Rosa de Luxemburgo queria quando foi assassinada pelos
comunistas, que fizeram um Estado mais competitivo de que o
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capitalismo. Ela queria um socialismo pluripartidário, de baixo para
cima. E o que você quer de um Estado com partido único? A
corrupção era tão grande que as contas mais gordas na Suíça são
as provenientes da antiga União Soviética e do México, cuja dívida
externa foi toda para o PRI.
AZ — Estamos hoje presenciando o que Thomas Khun chamou de
revolução de paradigma. Como você encara este momento?
RMM — O Michel Foucault a chama de epísteme. Acontece como
na Renascença, quando se transformaram todas as idéias e
instituições. Saímos da sociedade de estamentos para a de classes
e para o mundo de nações. A ciência, que era magia, ganhou
Descartes e Galileu. Houve então uma mudança de paradigma, que
não chegou a todo mundo porque ainda hoje há muita gente
primitiva. Mas agora, com a televisão e o computador, estamos
chegando a uma nova mudança de paradigma. Tudo que foi feito há
dez anos atrás está sendo jogado no lixo. E o processo atual é mil
vezes mais importante do que o que ocorreu na Renascença.
AZ — Segundo Peter Russell, este é o fato mais importante
ocorrido na Terra desde o surgimento da vida, há 3,5 bilhões de
anos. Que aspectos você destacaria nessa transformação que
estamos vivendo?
RMM — Primeiro, saímos da Terra e fomos para o espaço, o que era
impensável. Segundo, temos armas com fabulosa capacidade
destrutiva. É a ciência chegando ao coração da matéria como um
aprendiz de feiticeiro. O homem macho só vai conseguir dominar
isso quando tiver uma epistemologia baseada na partilha e na
solidariedade, isto é, estruturalmente ética. Outra coisa, já
conhecemos a profundidade do ser humano, podemos fazer
engenharia genética, construir cIones do ser humano, pegar um
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embrião e fazer quatro Rose Marie igualzinhas. Além disso, a
comunicação eletrônica já atingiu todos os confins da Terra. E
mesmo com tudo isso o homem está destruindo o planeta.
Precisamos reprogramar o homem desde antes do nascimento.
AZ — As pessoas costumam julgar as mulheres a partir do
exemplar mas próximo, que em geral não corresponde ao conceito
de mulher que você defende. Por exemplo, a Margareth Thatcher
corresponde a esse conceito?
RMM — Claro que não. Ela representa a supermãe, a mãe do
patriarcado, juntando o pior da mulher com o pior do homem. A
mãe verdadeira não é controladora. Pelo contrário, ama o filho de
dentro para fora e, de certa forma, é libertadora.
AZ— E a Betty Friedam, uma das fundadoras do feminismo?
RMM — Também não. Eu conheço bem a Betty Friedam, que é o
arquétipo da bruxa. Tem uma posição de baixa sensibilidade e forte
agressividade, como o homem em geral.
AZ — Como você se conceitua?
RMM — Sou uma sindicalista. Não tenho trauma ou frustração
com homem, não quero ter pênis. Estou muito feliz em trazer uma
coisa nova para a humanidade: entender o feminino e o masculino
como o conjunction opositorum de Jung, como dois pólos do imã,
opostos e complementares.
AZ — Mas parece que não era assim no início do movimento.
Tanto que as pessoas costumam dizer que existem as feministas e
as femineiras. Em sua opinião, por que feminismo e não
humanismo?
RMM — Há vinte anos atrás, a primeira pergunta que me fizeram
foi: mulher quer ser igual ao homem? Vamos lá, o feminismo nada
mais é do que um sindicato. Quando a mulher entrou para a força
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de trabalho, veio com dez mil anos de opressão. Saía de casa, sem
a prática do poder que o homem tinha. Às vezes era mais
qualificada do que o homem, trabalhando o dobro do tempo dele
mas ganhando metade do salário. É uma estatística das Nações
Unidas, não fui eu quem inventou. Além disso, de toda a riqueza do
mundo, 1% está em mãos de mulheres e 99%, de homens. A mesma
percentagem ocorre na distribuição do poder. Claro que, nestas
condições, quando a mulher entrou no mercado de trabalho, foi
rigorosamente explorada. Nesta época, ela se organizou para exigir
salário, poder e condições iguais.
AZ— Foi a essas alturas que entrou a questão do orgasmo?
RMM — Exatamente. Surgiu o problema da sexualidade, pois a
mulher passa a exigir também o orgasmo. Durante dez mil anos, as
mulheres orgásticas foram assassinadas como bruxas. Ora, o
pessoal veio dizendo que o feminismo queria a mulher igual ao
homem. De fato, na primeira fase, o tratamento para os dois era tão
diferente que foi preciso batalhar por um mínimo de equiparação
financeira.
AZ — Quando o discurso do feminismo começou a mudar?
RMM — Já em 1977, escrevia-se que a mulher era radicalmente
diferente do homem. Enquanto ele agia mais na área do destrutivo,
do Tânatos, ela era construtiva, próxima ao Eros. Essa idéia foi
lançada por Herbert Marcuse que, numa conferência, nos inspirou a
todas. A gente não podia perder o caráter erótico, de construção da
vida. Surgiu então uma série de estudos analisando como os dois
sexos pensavam. Tivemos que rever todas as ciências para que
não fossem machistas pois, sendo neutras, seguiam o sexo
dominante. ldem para o Estado, a empresa, a Igreja, o sindicato, os
partidos políticos, etc. De outra forma, não seriam democráticos.
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Foi um grande espanto para todos, pois pensava-se que nada disso
seria preciso. Portanto, respondendo á sua pergunta anterior, é
necessário um feminismo de raça para haver um humanismo.
Senão, corremos o risco de voltarmos para o neutro.
AZ — Então, o feminismo seria fundamental para uma mudança
de mentalidades?
RMM — A grande descoberta do século vinte, e que servirá de
modelo para o próximo, é que devemos ter uma luta de classes
complementada por uma revolução na subjetividade, naquilo que é
mais íntimo da gente. A União Soviética, por exemplo, tentou mudar
o objetivo sem considerar o subjetivo e danou-se. O pessoal
passou a consumir e minou as bases do regime. Nos Estados
Unidos, houve o contrário: fizeram a revolução das cabeças sem
mexer no regime. Parece-me que está dando mais certo. No final do
século, um dos modelos que vão sair do Terceiro Mundo será o da
luta do oprimido sobredeterminando todas as outras opressões: de
sexo, raça, etc. Esta descoberta ocorrida nos anos 70 é muito séria.
Foi na nossa mão, minha e do Leonardo Boff, que nasceu o
movimento de mulheres e a Teologia da Libertação. Agora estou
fazendo teologia feminista libertadora.
AZ — Você falou que, nos EUA, foi alterado o subjetivo e não o
objetivo. Em um livro escrito pela secretária da primeira dama
Eleonor Roosevelt, consta que esta lhe teria dito: “Os homens são
uma coisa que temos que admitir.” Isto em pleno século vinte. Será
que hoje o movimento feminista norte-americano atingiu realmente
todas as camadas da população?
RMM — Sim. Morei lá e sei que, durante o período da Guerra do
Vietnã, a grande idéia da década de 60 foi que quem tendesse para
uma cabeça progressista na sexualidade, faria o mesmo em relação
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à política. Foi contra isso que a Heritage Foundation, a American
Enterprise Association e outras fundações reacionárias fizeram um
trabalho louco para que a maioria silenciosa voltasse ao poder em
1979. Conto tudo isso no meu livro Os seis meses em que fui
homem.
AZ — Como a conscientização das mulheres começou a ganhar
corpo?
RMM — Isso está no livro A mulher no Terceiro Milénio. No
começo da industrialização, em 1848, ocorreu a primeira grande
reunião de mulheres. No ano em que Marx escrevia o Manifesto
Comunista, as mulheres se reuniam numa cidade norte-americana
chamada Soneca Falls, reclamando estarem entrando no mercado
de trabalho de maneira desvantajosa por terem ficado em casa
tanto tempo. À partir daí, iniciou-se uma campanha que durou
quase cem anos. Norte-americanas, inglesas, francesas e
holandesas andaram pelo mundo inteiro e só conseguiram alguma
coisa no início do século vinte, quando conquistaram o direito ao
voto em seus países. É um acontecimento muito recente, quase
instantâneo, em termos de história da Humanidade. E assim
mesmo a mulher votava de maneira conservadora. Pensava-se que
votar bastaria para que ela automaticamente se libertasse.
Libertou-se coisa nenhuma! Começou a votar com o marido, voto
de cabresto. A mulher só foi se libertando na medida em que
chegou ao segundo feminismo, que mexeu com sua cabeça.
AZ — Talvez os homens - e algumas mulheres - não tenham
entendido naquela época que o movimento estava apenas se
iniciando e começaram a ridicularizá-lo.
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RMM — Claro. Na década de 70, chamavam a gente, aqui no Brasil,
exatamente como chamavam as sufragistas: feia, mal amada,
prostituta, etc.
AZ — Por que se diz que feminismo é coisa de mulher mal amada,
com complexo de inferioridade? Tem algo a ver com a cultura
ocidental, que tem tendência a confundir sexo com libertinagem?
RMM —Acontece que somos um sindicato. E no século XIX, os
sindicatos foram o grande bicho-papão dos empresários. Se você
ler O Capital, de Marx, verá como era desgraçada a vida dos
operários e que lucro monumental davam ao patrão. Eram 16 horas
de trabalho por dia e o salário se reduzia a uns tostões. Pior do que
o salário mínimo daqui. Morriam de miséria. Essa foi a origem da
acumulação primitiva do Império Britânico. A partir daí surgiram os
sindicatos, que puseram um cobro à ambição desmedida dos
patrões. No fim do século XIX, já se tinha uma jornada de trabalho
de 8 horas, um salário razoável e um forte movimento sindical. Se
ele se atrelou aos patrões em meados do século XX, em
compensação, desenvolveu os países. Porém, antes de 1054
sindicalista era sinônimo de comunista, ateu, gente que comia
criancinhas, coisas assim. Então, nós estávamos nesta área de
organização do feminino, fomos vítima de muito preconceito.
AZ — Como você, possoalmente, reage a isso?
RMM — Acho um atraso de cabeça tão descomunal que não me
preocupo muito. Quer que eu diga por quê? Em janeiro deste ano, li
uma enquete de opinião pública feita pelo Gallup norte-americano,
encomendada pelo governo e publicada pela revista Diálogo em
uma matéria escrita por Barbara Ehrenreich. Segundo a pesquisa,
56% de todas as norte-americanas se declaravam feministas. Isto
são mais de 50 milhões de mulheres válidas, e que não são mais
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crianças. Quando se diz aqui que feminista come criancinha, é uma
babaquice tão grande que as norte-americanas ficam uma arara. O
fato é que ser feminista hoje sinaliza modernização de cabeça.
AZ — Na sua opinião, o feminismo é somente professável pelas
mulheres, ou os homens também podem ser feministas?
RMM — Podem, claro. Hoje somos metade da força de trabalho, e
donas da própria sexualidade. Quando as mulheres começaram a
se libertar, os homens passaram a ficar perdidos.
AZ — Todos os homens?
RMM — Os companheiros dessas mulheres. No Primeiro Mundo,
todos. Aqui ainda não chegamos a esse estágio. Esses homens
começaram a repensar sua sexualidade. Na Editora Rosa dos
Tempos, da qual sou sócia, tenho uma linha inteira sobre
sexualidade masculina. A grande moda hoje é repensar a posição
do homem. E a tal mudança de cabeças sem a qual não se
consegue reverter o processo de destruição do planeta. Nos anos
80 como um todo, houve uma coincidência de dois assuntos.
Primeiro, o homem macho estava destruindo a Terra. A
industrialização e os países desenvolvidos poluíam o planeta
culpando os países subdesenvolvidos. Segundo, todas as
mulheres válidas já haviam entrado no mundo masculino. Acabou a
diferença entre o masculino e o feminino. As mulheres entraram no
mercado de trabalho não porque foram distorcidas, mas porque o
capitalismo produziu mais máquinas do que machos, diminuiu o
salário dos homens e obrigou as mulheres a trabalharem para
complementar a renda doméstica. Sem saberem, elas chegaram às
fábricas com uma cabeça completamente diferente da dos homens.
AZ — Mas isso de apenas gerar um complemento de salário não
era inferiorizante?
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RMM — Primeiro, pensava-se que isso fosse uma inferioridade.
Hoje sabemos que a cabeça dos homens é que estava
esquizofrenizada, fazendo uma persona no trabalho e outra em
casa, dividindo o mundo em classes, o conhecimento em ciências
especializadas, a arte em compartimentos, as classes em clãs, etc.
Você tem que ler o Os seis meses em que fui homem para saber
por que o homem é dividido e a mulher não. Foi o próprio sistema
que diabolicamente carimbou o homem para ser dividido e a
mulher para ser construtiva. E a mulher ficou alocada para Ter os
bebês, criá-los. O homem é egoísta e a mulher altruísta. Ele é capaz
de matar sem culpa, ela não faz mal à uma mosca. Ambos estão
errados.
AZ — Que tal se você transgredisse pela primeira vez seus
hábitos e dissesse o que Rose Marie Muraro acha de Rose Marie
Muraro?
RMM — Bom. Já estou com 60 anos e, nessa altura da vida, a
pessoa pode fazer um balanço do que passou. Posso dizer até que
acabei realizando muitas fantasias que nunca tive, porque era
estreita demais para isso. Principalmente quando fui a países
desenvolvidos, como os EUA, onde era considerada uma pessoa
de ponta, das mais modernizadas. Isto, morando num país
subdesenvolvido, considerado atrasado. Lembro que, quando eu
trouxe o feminismo para o Brasil, ele era recente nos EUA e
Europa. Tanto que o movimento em nosso país data de 1970, no
resto da América Latina, chegou na década de 80? Por isso a
cabeça da mulher brasileira é muito mais modernizada do que no
resto da América Latina, onde tenho a impressão de estar ainda no
século XIX.
AZ — Como foi sua formação acadêmica?
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RMM — Fiz o curso de Física. Acho que por isso cheguei ao
misticismo. Os físicos desmistificam a matéria, e serão os grandes
místicos do Terceiro Milênio. Estudei na antiga Universidade do
Brasil, de 1949 a 1952. Saí no último ano, quando faria física
teórica.
AZ — No último ano?!
RMM — Mas já dava para ter uma idéia geral. Nesta época, meus
amigos matemáticos estavam todos sendo psiquiatrizados. Eu
achava que eles eram gênios e eu não. Foi quando li uma frase de
Chesterton que dizia: “Louco não é o que põe a cabeça na Lua, mas
o físico que quer pôr a Lua na cabeça.” Então, fugi da faculdade
quando faltavam três meses para me formar.
AZ — Uma de suas idéias de ponta, atualmente, é o conceito de
androginia como modelo futuro de relações humanas. Você
poderia explicar isso melhor?
RMM — Sou uma mulher basicamente voltada para os homens,
pois minha orientação é heterossexual. Mas tenho dentro de mim a
mulher e o homem, que é a definição do andrógino. O homem
andrógino é basicamente voltado para a mulher, mas também tem
uma dentro do si. Assim, a relação entre andróginos é mais fácil.
São quatro se relacionando, há ao mesmo tempo a semelhança e a
diferença. Já o homossexual, tanto masculino quanto feminino, só
transa a semelhança, tem medo da diferença. O homossexual
homem é o mais masculino dos homens porque imita a mulher para
se ver livre dela. E a homossexual feminina é a mais feminina das
mulheres porque imita o homem para ver-se livre dele. Presenciei
as relações entre os gays em Nova lorque, eram tipicamente
masculinas: impessoais, violentas, dissociadas. E as relações entre
mulheres eram assim: ou casais com carícias que não acabavam
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nunca, um cuidado extremo... Naquela época o psicólogo Neil
Simon publicou um artigo na Psichology Today exibindo uma
enquete sobre o número de parceiros. Segundo ele, 2% dos
homossexuais haviam tido mil ou mais parceiros sem valor, 80%
tiveram mais de cem parceiros e apenas 2% eram casais. Entre as
lésbicas acontece justamente o contrário. Nenhuma havia tido mil
parceiras, 2% tiveram mais de cem parceiras o 80% viviam em
casais estáveis. Você vê como há diferença entre as cabeças do
homem e da mulher em seus extremos?
AZ — E o que você tem a dizer sobre a androginia em relação à
Nova Era?
RMM — Androginia é a maior riqueza que existe no ser humano.
Mas esse sistema competitivo nos afasta cada vez mais dela. Na
medida que dissocia classes sociais, mente de corpo. etc., também
tende a dissociar o homem da mulher. Então o homem tem medo
de seu lado feminino e a mulher de seu lado masculino. Ao mesmo
tempo, ser o outro sexo é o ideal mais profundo do inconsciente
humano, mais do que a relação com o todo, porque ela deriva de se
ter, dentre do si, a totalidade. Freud dizia que, após muitos anos,
via o desejo da androginia nos sonhos do seus pacientes. Ser
bissexual e hermafrodita, a pessoa que se fecunda a si mesma.
AZ — Você está propondo uma revolução absoluta na
sexualidade humana. Qual seria o caminho para isso?
SE/li — A gente só chega lá se modificar totalmente o sistema,
levando-o a tender para a integração. Conforme havíamos falado
sobre o novo paradigma, o ser humano da Nova Era é andrógino e
só pode ser filho da mulher que trabalha e do homem que volta
para casa. Assim, no momento em que o pai passa a se comportar
como a mãe, o menino pode se identificar sexualmente com elecomo amigo e não como a figura de opressor. Somente assim o
garoto perde e medo de afeto. A sexualidade masculina já não
estará ligada à morte e sim à vida. Ele vai ser altruísta. Olha só que
reviravolta fantástica. Acaba aquele carimbo que o sistema havia
colocado sobre a gente.
AZ -— E quais são os efeitos desta postura sobre a mulher?
RMM — Com a mulher, a mesma coisa. Ela não precisará mais ser
simplesmente altruísta apenas no sistema. No sistema patriarcal
ela é ligada à mãe da mesma maneira que o menino. Quando se
apaixona pelo pai, não tem nada a perder, porque já vem
castrada! Não há ameaça de morte imaginária. Ela pode se dar ao
luxo de amar sem sentir medo. Passa então a se identificar
sexualmente no amor do outro. No momento, o amor que salva a
mulher é o amor do outro. O que salva o homem é o de si. Não é
possível uma relação com estes dois tipos. Tanto que nunca
houve relação entre homem e mulher. Só haverá quando ambos
forem andróginos. Esta dialética é uma cumplicidade profunda e
ao mesmo tempo um desafio para os dois sexos. O homem só
entenderá a mulher, e vice-versa, quando ele também souber ser
mãe.

Encontrado em MATER MUNDI

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